Juliana Sada
A ação da prefeitura e do governo de São Paulo na chamada Cracolândia
completa oito dias sob intensa contestação. Promotores do Ministério
Público Estadual a chamaram de “desastrosa” e abriram um inquérito para
apurar “objetivos, responsabilidades e eventuais atos de violência” da
operação.
Para o jurista Wálter Maierovitch, “a tortura indireta posta
em prática pela dupla Kassab-Alckmin tem o mesmo fundamento dos campos
de concentração nazista”.
A
operação foi criticada também por profissionais da área de saúde que
discordam que a “dor e o sofrimento” levará os dependentes buscarem
ajuda – como disse Luiz Alberto Chaves de Oliveira, coordenador na
Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania – ao contrário
a abstinência os tornará violentos. Agora, surgem denúncias de que não
há estrutura suficiente para receber os dependentes químicos na saúde
pública.
Organizações sociais
denunciam que está ocorrendo uma “higienização” da região por conta do
“Projeto Nova Luz”, da prefeitura paulistana que pretende “requalificar”
a região com empreendimentos imobiliários. Além disso, moradores de
bairros vizinhos, como o nobre Higienópolis, passaram a reclamar devido à
presença dos usuários de crack que agora estão perambulando pela
região.
Para discutir o assunto, o Escrevinhador
conversou com o advogado Rodolfo de Almeida Valente, que é coordenador
do Instituto Práxis de Direitos Humanos, entidade que tem acompanhado a
operação e denunciado os abusos policiais.
Você esteve na Cracolândia nesta madrugada, do dia 11, o que mais te chamou a atenção nessa visita?
Sem
dúvida, o que mais me sensibilizou foi o estado de total desamparo
daquelas pessoas. Com exceção do brilhante trabalho realizado pela
Defensoria Pública de monitoramento da ação policial e de aproximação
com essa população, apenas pudemos divisar dezenas de viaturas tocando
as pessoas para lá e para cá como se fossem gado. Um dos jovens com quem
conversamos nos indagou: “A gente já sofre por ser usuário de crack e
agora tem que aguentar esculacho da polícia? Não precisava, né?”. Ele
tem razão. Não precisava disso, mas é assim que esse Governo vem
tratando seus cidadãos mais vulneráveis.
Foram
divulgadas denúncias de tortura e violência contra os usuários de crack
na região. Você se deparou com alguma situação de abuso policial?
Vimos,
em umas três oportunidades, viaturas avançando sobre a calçada para
dispersá-los. Ouvimos muitos relatos de usuárias e usuários de crack
segundo os quais houve agressões, tortura e vários outros abusos, mas,
na nossa presença, os policiais não ousavam sequer abordá-los. Sempre
que chegávamos a algum ponto, os policiais se afastavam para outro. A
julgar apenas pelo que presenciamos, o que fica claro é que a operação,
ao perturbar essa população por horas a fio, pode sim ser configurada
como caso de tortura.
Os
abusos são fruto de ações individuais de policiais ou fazem parte da
maneira de agir da PM? Como coibir isso e responsabilizar os culpados?
Do
que vimos, parece que a ação é orquestrada mesmo. Com a intenção de
dispersar essa população, os policiais os empurravam de um lado para o
outro daqueles arredores, lançando mão das próprias viaturas, de
lanternas e, segundo diversos relatos, até mesmo de violência. Ouvimos
denúncias de que os policiais utilizaram gás de pimenta e chegaram a
agredir várias pessoas. Chegamos a encontrar um rapaz com o pulso
completamente rasgado, segundo ele, por uma mordida de um cão da PM. Há
relatos também de que houve atropelamentos propositais.
É
muito difícil encontrar os responsáveis. Orientamos a população para
que tome nota de placa de viaturas, nome de policiais, local, etc. A
Defensoria Pública tem sido muito zelosa na coleta dos relatos e já
registrou alguns boletins de ocorrência. Cabe agora ao Ministério
Público, por atribuição legal, correr atrás dessas provas para apurar e
responsabilizar os agentes policiais que cometeram esses crimes.
A Rota passou a fazer parte das operações na Cracolância. Isso sinaliza um possível aumento na violência?
A
Rota, apesar de corresponder a menos do que 0,5% de todo efetivo da
Polícia Militar, é responsável por 20% dos homicídios cometidos por
policiais dessa corporação. O seu atual comandante, nomeado recentemente
pelo Governador, teve participação direta no Massacre do Carandiru. Por
essas razões, tudo indica que a participação da Rota aumentará
sensivelmente os abusos e a violência da operação.
Em um relato, o Instituto Práxis afirma que o problema não é o crack mas sim a Cracolândia. Poderia explicar melhor isso?
É
nítido que a ação da PM tem muito menos a ver com o tráfico e o uso de
crack do que com a extinção do símbolo da Cracolândia. A manobra é
eleitoreira e pretende apenas a consecução simbólica do “fim” da
Cracolândia. Observamos que os policiais passavam batido por diversos
usuários e traficantes que permaneciam isolados em algum canto da
Cracolândia. Bastava, no entanto, a aglomeração de algumas dezenas de
usuários para aparecer uma viatura e “tocá-los”.
Até o momento, o Estado se fez presente na Cracolândia apenas pelo uso da força. Como o Estado deveria agir?
Se
houvesse real comprometimento com a saúde dessas pessoas reféns do
crack, o Estado providenciaria uma rede estruturada de atendimento e
acompanhamento para aqueles que querem superar o vício, com uma política
também voltada para a redução de danos. Da maneira como o Estado tem
agido, parece óbvio que os reais interesses não têm nada a ver com a
saúde dessas pessoas. Tais interesses perpassam, na realidade, pela
higienização do Centro, atendendo à ganância daqueles que se fartam com a
especulação imobiliária e que financiam campanhas justamente para isso.
Sintonia Fina
via Com Texto Livre
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