Conheça os casos em que João Grandino Rodas favoreceu os
militares quando era membro da Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos
21/12/2011
por Conceição Lemes.do Viomundo
A Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República lançou em agosto de 2007 o livro-relatório Direito à Memória e à Verdade: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Assinam a apresentação Paulo Vannuchi e Marco Antônio Rodrigues Barbosa, na época, ministro da Secretaria de Direitos Humanos e presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), respectivamente. Lá, afirmam:
“A violência, que ainda hoje assusta o País como ameaça ao impulso de crescimento e de inclusão social em curso deita raízes em nosso passado escravista e paga tributo às duas ditaduras do século 20. Jogar luz no período de sombras e abrir todas as informações sobre violações de Direitos Humanos ocorridas no último ciclo ditatorial são imperativos urgentes de uma nação que reivindica, com legitimidade, novo status no cenário internacional e nos mecanismos dirigentes da ONU”.
O livro é o resultado do trabalho desenvolvido ao longo de 11 anos (janeiro de 1996 a dezembro de 2006) pela CEMDP, que foi criada para três tarefas: reconhecer formalmente caso por caso, aprovar a reparação indenizatória e buscar a localização dos restos mortais que nunca foram entregues para sepultamento.
Instituída por lei, era composta de sete integrantes: um deputado da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, uma pessoa ligada às vítimas da ditadura, um representante das Forças Armadas, um membro do Ministério Público Federal e três pessoas livremente escolhidas pelo presidente da República.
Entre as pessoas escolhidas pelo então presidente Fernando Henrique, o jurista João Grandino Rodas, atual reitor da Universidade de São Paulo (USP). Ele integrou a CEMDP desde a sua criação, em dezembro de 1995, a dezembro de 2002, representando o Ministério das Relações Exteriores.
“O mesmo Rodas que permitiu a ação truculenta da PM no campus da USP há uma semana [8 de novembro] deu uma mãozinha para os carrascos das vítimas da ditadura de 1964 a 1985”, observa Carlos Lungarzo, membro da Anistia Internacional. “Na CEMDP, ele votou contra a culpabilidade do Estado pela morte e desaparecimento de vários presos políticos.”
Essa informação levou esta repórter a pesquisar os votos de João Grandino Rodas no livro-relatório Direito à Memória e à Verdade. E, de fato, dos pedidos em que ele foi desfavorável, pelo menos 11 acabaram sendo deferidos pela CEMDP. Nesses casos, curiosamente, Rodas votou como o general Oswaldo Pereira Gomes, representante das Forças Armadas, e/ou promotor Paulo Gustavo Gonet Branco, representante do Ministério Público Federal.
Zuzu Angel: “Obra dos mesmos assassinos do meu amado filho"
O
caso da estilista Zuleika Angel Jones, conhecida como Zuzu Angel, é um
deles. Mãe da jornalista Hildegard Angel, sua morte foi desdobramento da
morte de seu filho Stuart Edgard Angel Jones, assassinado sob terríveis
torturas na Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro,em 1971.Sobre o caso de Zuzu Angel, o livro Direito à Memória e à Verdade revela:
Zuleika Angel Jones (1923 – 1976)
Número do processo: 237/96
Data e local de nascimento: 05/06/1923, Curvelo (MG)
Filiação: Francisca Gomes Netto e Pedro Netto
Organização política ou atividade: denúncia da morte do filho como resultado de torturas.
Data e local da morte: 14/04/1976, Rio de Janeiro (RJ)
Relator: Luís Francisco Carvalho Filho
Deferido em: 25/03/1998 por 4×3 (votos contra do general Oswaldo Pereira Gomes, Paulo Gonet Branco e João Grandino Rodas)
“Se algo vier a acontecer comigo, se eu aparecer morta, por acidente, assalto ou qualquer outro meio, terá sido obra dos mesmos assassinos do meu amado filho”. O trecho da carta escrita em 23/04/1975 pela estilista Zuleika Angel Jones, conhecida como Zuzu Angel, entregue ao compositor Chico Buarque e outros amigos, representou uma verdadeira premonição a respeito de sua morte um ano depois.
Zuzu Angel morreu em 14/04/1976, num acidente automobilístico à saída do túnel Dois Irmãos, no Rio de Janeiro. A suspeita de que esse acidente tivesse sido provocado envolveu imediatamente todas as pessoas bem informadas sobre o que era o aparelho de repressão política do regime militar. Mas foi somente através da CEMDP que se tornou possível elucidar os fatos. Restou provado que sua morte foi desdobramentoe conseqüência da morte de seu filho Stuart Edgard Angel Jones, em 1971, caso já apresentado neste livro-relatório.
Profissional de sucesso – vestia atrizes como Liza Minnelli e Joan Crawford –, Zuzu conseguiu transformar o desaparecimento de seu filho Stuart num acontecimento que provocou forte desgaste internacional para o regime militar brasileiro. Com isso, despertou a ira dos porões da ditadura, que passaram a vê-la como ameaça. Buscando incansavelmente o paradeiro do filho, esteve nos Estados Unidos com o senador Edward Kennedy; furou o cerco da segurança norte-americana e conversou com Henry Kissinger, em visita ao Brasil; prestou detalhado depoimento ao historiador Hélio Silva; escreveu ao presidente Ernesto Geisel, ao ministro do Exército Sylvio Frota, ao cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e à Anistia Internacional. Em um de seus desfiles, estampou os figurinos com tanques de guerra e anjos tristes. Quando começou a receber ameaças de morte, alertou os amigos.
Zuzu estava absolutamente sóbria na noite do acidente e uma semana antes tinha feito revisão completa em seu carro que, sem aparente motivo, desviou-se da estrada, capotando diversas vezes em um barranco. A análise das fotos e dos laudos periciais, as inúmeras contradições e omissões encontradas no inquérito e depoimentos de testemunhas oculares compuseram uma base robusta para a decisão da CEMDP reconhecendo a responsabilidade do regime militar por mais essa morte de opositor político.
De início, o relator do caso na Comissão Especial recomendou o indeferimento, que só recebeu dois votos contrários. Mas a família de Zuzu decidiu exumar o corpo e entrou com recurso, levando o relator a mergulhar na investigação dos novos dados. A exumação foi realizada por Luís Fondebrider, da Equipe Argentina de Antropologia Forense. Foram também apresentadas novas testemunhas, entre elas o advogado Carlos Machado Medeiros – filho de um ex-ministro da Justiça de Castello Branco – que trafegava pela estrada Lagoa-Barra da Tijuca e forneceu uma declaração escrita afirmando que : “(…) dois veículos abalroaram o Karmann Ghia azul de uma pessoa que, logo depois, na manhã seguinte, constatei ser Zuzu Angel”.
Com medo de represálias, contou apenas aos amigos. Três deles confirmaram integralmente essa declaração perante o relator, Luís Francisco Carvalho Filho, que não conseguiu falar pessoalmente com o advogado Carlos Medeiros, que também sofreu um acidente automobilístico causador de graves seqüelas e problemas de memória.
Outros depoimentos, recolhidos na segunda fase do processo, foram o da psiquiatra Germana Lamare – a quem Zuzu contou estar sendo ameaçada de morte – e de Marcos Pires, estudante residente na Barra da Tijuca que escutou o ruído do acidente e, ao chegar ao local, já encontrou uma dúzia de carros oficiais, a maioria da polícia, ao redor do automóvel destruído de Zuzu. As informações foram relatadas em uma carta enviada a Hildegard, filha de Zuzu e colunista do jornal O Globo. Mais tarde, em depoimento prestado a Nilmário Miranda em 12/02/1996, ele admitiu ter presenciado o acidente:
“Eu só vi um carro saindo (do túnel) e logo em seguida um outro carro que emparelha com esse carro. (…) Eu vi quando o carro que ultrapassa o carro da direita (…) abalroa este carro (…) e faz com que ele caia a uma distância que estimei na hora em cinco metros (…)”. A versão de Marcos Pires contrariava frontalmente o laudo oficial do acidente e praticamente dirimiu todas as dúvidas.
Em seu voto final pela aprovação do requerimento, Luís Francisco recuperou as inúmeras contradições do caso, que o levaram a contratar Valdir Florenzo e Ventura Raphael Martello Filho, especialistas em perícias de trânsito em São Paulo, para analisar os documentos policiais.
Em relatório minucioso eles argumentam: “Ao reexaminar o laudo original, duas circunstâncias chamaram minha atenção. Em primeiro lugar, o documento é instruído com 16 fotografias mas, aparentemente, nenhuma delas se destinava a mostrar, especificamente, as marcas da derrapagem (28 metros) na pista e as marcas da atritagem nos pneus dianteiros. Em algum lugar, na perspectiva de um observador leigo, surgiram as seguintes indagações: o meio-fio da direita seria um obstáculo capaz de provocar uma mudança de trajetória tão drástica como a que foi descrita? Levando-se em consideração que, segundo os próprios peritos, o meio-fio é de altura normal e que, segundo as fotos que instruem o laudo da época estava visivelmente coberto por vegetação rasteira, o veículo, naquela trajetória, não iria simplesmente transpor o obstáculo? (…)”.
Os peritos também descartaram a possibilidade de Zuzu ter dormido ao volante: “a dinâmica pretendida pelo laudo correspondente ao exame do local é absolutamente inverossímil. Primeiro porque um veículo jamais mudaria de direção abruptamente única e tão somente por conta do impacto de qualquer de suas rodagens contra o meio-fio, qual seria galgado facilmente, projetando-se o veículo pelo talude antes de chegar ao guarda-corpo do viaduto.
Segundo porque, sendo o meio-fio direito da auto-estrada perfeita e justamente alinhado com o guarda-corpo do viaduto, mesmo que o veículo se desviasse à esquerda, tal como o sugerido pelo laudo, desviar-se-ia do guarda-corpo, podendo, se muito, chocar o extremo direito da dianteira. Terceiro porque, mesmo que se admitisse a trajetória retilínea final, nos nove metros consignados pelo laudo, tendo-se em conta que o veículo chocou a dianteira esquerda e que não havia mais nada à direita, a não ser a rampa inclinada da superfície do talude, teríamos que aceitar que as rodas do lado direito ficariam no ar e o veículo perfeitamente em nível até que batesse no guarda-corpo, o que, evidentemente seria impossível”.
Em 1987,
Virgínia Valli, publicou o livro “Eu, Zuzu Angel, procuro meu filho – a
verdadeira história de um assassinato político”.
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento
Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar
Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino
Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar
Edson Luiz, secundarista morto no Calabouço
Sobre o caso, o livro Direito à Memória e à Verdade afirma:
Edson Luiz Lima Souto (1950 – 1968)
Número do processo: 310/96
Filiação: Maria de Belém Lima Souto
Data e local de nascimento: 22/08/1956, Belém (PA)
Organização política ou atividade: Movimento Estudantil
Data e local da morte: 28/03/1968, Rio de Janeiro (RJ)
Relator: João Grandino Rodas (1º) e Nilmário Miranda (2º)
Deferido em: 24/04/1997 por 4×3 (votos contra João Grandino Rodas, Paulo Gonet Branco e o general Osvaldo Gomes)
A morte do secundarista Edson Luiz Lima Souto ficou como grande marco histórico das mobilizações estudantis de 1968. Com 18 anos recém-completados, 1m59 de altura e armado apenas com o sonho de conquistar condições dignas na escola onde estudava, foi morto com um tiro certeiro no peito, disparado à queima-roupa por um tenente da PM, em 28/03/1968, contra estudantes que se manifestavam no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro. A bala varou seu coração e alojou-se na espinha, provocando morte imediata.
Indignados, seus colegas não permitiram que o corpo fosse levado ao IML, conduzindo-o para a Assembléia Legislativa em passeata. Lá, sob cerco de polícias civis e militares, foi realizada a autópsia e aconteceu o velório. O caixão chegou ao cemitério João Batista nos braços de milhares de estudantes.
Nascido em Belém do Pará, Edson era filho de uma família muito pobre que se empenhou para enviá-lo ao Rio de Janeiro, a fim de que concluísse os estudos secundários. Matriculou-se no Instituto Cooperativo de Ensino, nas proximidades da Secretaria de Economia do Estado.
Conforme entrevistas concedidas à revista Fatos e Fotos por integrantes da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço, o garoto não chegava a ser um líder estudantil. Falava pouco e ainda estava meio desconfiado, mas colaborava colando jornais murais e dando recados, contaram os colegas.
Estava programada mais uma passeata e Edson resolveu jantar mais cedo, naquele 28 de março, para ter tempo de preparar alguns cartazes. Segurava a bandeja na mão quando começou uma correria e foi atingido por um cassetete no ombro. Os policiais militares, que tinham invadido o local, começaram a atirar. Os estudantes armaram-se de paus e pedras para responder. Foi quando Edson caiu.
Na mesma ocasião, tiros atingiram o comerciário Telmo Matos Henrique e o estudante Benedito Frazão Dutra. Conforme a versão de algumas testemunhas, o tenente PM Alcindo Costa teria ficado enraivecido ao ser atingido por uma pedrada na cabeça.
Outros jovens presentes no local afirmaram que Edson foi atingido por se encontrar à porta quando a tropa chefiada por Alcindo entrou em formação fechada de ataque.
O local da morte foi o principal motivo que levou o relator do processo na CEMDP a propor o indeferimento do caso. No seu entendimento, o Calabouço não configurava “dependências policiais ou assemelhadas”, conforme exigido na Lei nº 9.140/95.
Houve um pedido de vistas e, no novo relatório, prevaleceu por estreita margem a argumentação de que o restaurante estava invadido pelas forças policiais e, portanto, poderia perfeitamente ser considerado um local assemelhado às dependências exigidas legalmente para configurar a responsabilidade do Estado na morte. Com base nisso, o processo foi deferido.
Augusto e Otávio, IPM homologou farsa jurídica inicial
Augusto (não há foto) e Otávio Soares
Sobre eles, o livro Direito à Memória e à Verdade publica:
Augusto Soares da Cunha (1931-1964)Número do processo: 345/96
Data e local de nascimento: 03/06/1931, Governador Valadares (MG)
Filiação: Guiomar Soares da Cunha e Otávio Soares Ferreira da Cunha
Organização política ou atividade: não definida
Data e local da morte: 01/04/1964, Governador Valadares (MG)
Relator: Nilmário Miranda
Deferido em: 10/04/1997 por 4×3
Otávio Soares Ferreira da Cunha (1898 – 1964)
Número do processo: 345/96
Filiação: Anna Soares de Almeida e Roberto Soares Ferreira
Data e local de nascimento: 1898, Minas Gerais
Organização política ou atividade: não definida
Data e local da morte: 04/04/1964, Governador Valadares (MG)
Relator: Nilmário Miranda
Deferido em: 10/04/1997 por 4×3
Em Governador Valadares, norte de Minas Gerais, na véspera do movimento que depôs João Goulart, ruralistas radicalizados haviam cercado e metralhado a residência de Francisco Raimundo da Paixão, conhecido nacionalmente como Chicão, sapateiro e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, líder das mobilizações regionais em defesa da Reforma Agrária. Nesse cerco, houve troca de tiros e restou morto um dos atacantes, genro do coronel Altino Machado. No dia do Golpe de Estado, o clima entre fazendeiros da cidade era, portanto, de mobilização por vingança.
Nesse ambiente tenso, Augusto Soares da Cunha e seu pai Otávio Soares Ferreira da Cunha morreram também como vítimas do novo regime em seus primeiros momentos. O filho morreu no próprio dia 1º de abril de 1964 e o pai três dias depois, conseguindo sobreviver seu outro filho, Wilson, gravemente ferido no mesmo ataque.
Segundo o processo nº 35.679, do Superior Tribunal Militar, no dia 1º de abril de 1964, o tenente coronel delegado de Polícia na cidade de Governador Valadares declarou que:
“devido à falta de elementos no destacamento policial convocou Maurílio Avelino de Oliveira, Lindolfo Rodrigues Coelho e Wander Campos, todos reservistas, para prestarem serviços localizando e interceptando elementos comunistas e conduzindo-os à Delegacia em virtude do ‘Estado de Guerra’ em que se encontrava o Estado de Minas Gerais, aliás expressamente declarado pelo general Olímpio Mourão Filho, comandante, da 4ª Região Militar, a cujo mando foi incorporada a PMMG”.
A “convocação” dos três fazendeiros para prestar serviços de natureza policial pelo delegado coronel Paulo Reis teria ocorrido às 8h da manhã do dia 1º/04/1964, apenas uma hora antes da ocorrência criminosa, cabendo deixar em aberto, portanto, a possibilidade de essa convocação ter sido tão-somente um expediente formal forjado a posteriori.
Segundo o testemunho de Zalfa de Lima Soares, esposa de Wilson, e de Eunice Ferreira da Silva, empregada doméstica na residência da família, e levando em conta as declarações dos próprios assassinos, sabe-se que às 9 horas do mesmo dia, os três dirigiram-se à casa de Wilson Soares da Cunha, na rua Osvaldo Cruz, 203, naquela cidade mineira. Maurilio Avelino de Oliveira aproximou-se dos três ocupantes de um Jeep Land Rover – o pai Otávio e os filhos Augusto e Wilson – fazendo-se passar por amigo.
Depois de retirarem a chave do jipe, os fazendeiros passaram a atirar. Augusto teve morte imediata. O pai, Otávio, então com 70 anos, já alvejado, ainda conseguiu sair do veículo, engatinhou tentando refugiar-se no interior da casa, mas foi perseguido por Lindolfo, que o atingiu no rosto. Faleceu três dias depois, no hospital. Wilson Soares da Cunha, gravemente ferido, sobreviveu. Os assassinos ainda foram ao hospital procurar o outro filho de Otávio, o médico Milton Soares, que foi protegido pelos colegas médicos e enfermeiros.
O alvo principal da incursão seria o filho Wilson, que sobreviveu aos disparos, e sabidamente apoiava as atividades de Chicão em defesa da Reforma Agrária, tendo também ligações políticas com o jornalista Carlos Olavo, conhecido nacionalmente por defender as Reformas de Base e o governo João Goulart por meio do jornal tablóide O Combate, de Governador Valadares. O jornalista Carlos Olavo conseguiu escapar da cidade com a família, obteve exílio no Uruguai e só retornou ao Brasil em 1979, com a decretação da anistia.
A viúva Guiomar Soares da Cunha conseguiu do delegado Paulo Reis a abertura de Inquérito Policial. Segundo o jornal Última Hora, em 72 horas o delegado Bastos Guimarães tinha o nome dos criminosos e os denunciou ao juiz Alves Peito, que decretou a prisão preventiva dos mesmos. Os assassinos passaram à condição de foragidos. A partir daí travou-se uma batalha política envolvendo os coronéis Pedro Ferreira e Altino Machado, o major do exército Henrique Ferreira da Silva, a Associação Ruralista de Governador Valadares e outros apoiadores do novo governo, resultando na decisão do coronel Dióscoro Gonçalves do Vale, comandante do ID-4, de requisitar, com base no primeiro Ato Institucional, que o processo das mortes fosse transferido para a Justiça Militar.
O Inquérito Policial Militar (IPM) foi chefiado pelo Major Célio Falheiros. Em 19/08/1966, o Conselho Extraordinário de Justiça do Exército, na sede da Auditoria da 4ª Região Militar, homologou a farsa jurídica inicial.
O promotor Joaquim Simeão de Faria pediu ao Conselho que decidisse se, “no dia do crime ainda se considerava em Estado Revolucionário, pois apesar dos tiros terem sido desfechados pelas costas, se estivessem em estado Revolucionário haveria de ser considerada a situação em que tais tiros foram desfechados” ou se os acusados simplesmente cometeram homicídio doloso. Os advogados dos criminosos alegaram que os três acusados “estavam no estrito cumprimento do dever legal”, que a “situação era revolucionária e estavam em guerra”, que “os acusados, ao receberem voz de prisão, tentaram a fuga, o que determinara a reação dos acusados, que somente poderiam tomar atitude enérgica e viril eis que de dentro da casa onde tentaram refugiar não se sabia o que de lá viria”.
Na decisão, o conselho mandou apurar as responsabilidades das pessoas apontadas como subversivas e, por maioria de votos, 4 contra 1, absolveu os acusados Wander Campos e Lindolfo Rodrigues Coelho e, por 3 a 2, absolveu o acusado Maurílio Avelino de Oliveira. O Ministério Público recorreu ao STM, que reformou a sentença.
Em Governador Valadares, havia sido oferecida denúncia contra os assassinos em 17/05/1965. Os réus obtiveram no STF habeas-corpus recolhendo os mandados de prisão. Depois de uma série de tramitações judiciais, o STM, em 11/1/1967, condenou os três criminosos a 17 anos e meio de reclusão, por unanimidade.
O jornal Estado de Minas de 03/11/1996, com o titulo Memória de um crime em matéria assinada por Tim Filho, informa que os criminosos foram indultados por intermediação do governador Rondon Pacheco.
O relator na CEMDP concluiu que:
“há
decisões jurídicas comprovando que os três criminosos desempenhavam
serviço de natureza policial convocados por autoridades militares. Tanto
é que foram julgados, absolvidos e condenados no âmbito da Justiça
Militar. Comprovada está também, fartamente, a motivação política dos
crimes. Duas pessoas foram mortas, com tiros pelas costas e uma ferida,
estando todas desarmadas, após receberem ordem de prisão. Preenchidos
estão todos os requisitos exigidos pela Lei nº 9.140/95”, e votou pelo
deferimento do processo.O general Oswaldo Pereira Gomes solicitou vistas ao processo e lavrou o seguinte voto vencido:
“Verificamos que o STF tomou uma decisão política por 4 a 3 votos, mandando julgar pela Justiça Militar um ato Revolucionário de civis que obviamente não poderiam ser punidos, por terem sido vitoriosos e, se fosse o caso de punir, o julgamento deveria ter-se realizado na Justiça Comum. Ao final de tudo e para reparar o absurdo, a pedido do austero governador Rondon Pacheco e sob a responsabilidade do inatacável homem público que foi o presidente Castelo Branco, os homicidas foram indultados. Essa Comissão não deve e não pode julgar com critérios políticos, sobretudo revanchistas; estaremos, se assim fizermos, cometendo atos ilegais e contrariando frontalmente a Lei nº 9.140/95, que nos obriga no art 2º a acatar o princípio da reconciliação e pacificação nacional, expresso na Lei nº 6.683,de 28/08/1979 – Lei de Anistia. Inaplica-se, pois, a Lei nº 9.140/95, no caso de pessoas baleadas em via pública, no dia 01/04/1964, às 9h no quadro de um movimento revolucionário, vez que esses indivíduos não eram agentes públicos, nem poderiam sê-lo naquele momento quando o movimento não era ainda vitorioso; no caso os agentes eram simplesmente rebeldes”.
Os processos de Augusto e Otávio Soares Ferreira da Cunha tramitaram juntos e ambos foram aprovados por 4 votos a três pela CEMDP com votos contrários do general Osvaldo Gomes, de João Grandino Rodas e de Paulo Gonet.
Marcos Antônio, Ornalino, Alceri, Eiraldo, Quaresma, Jeová e Almir
Rodas também votou contra Marcos Antônio da Silva Lima, Ornalino Cândido da Silva, Alceri Maria Gomes da Silva, Eiraldo de Palha Freire, Edson Neves Quaresma, Jeová Assis Gomes e Almir Custódio de Lima. Só que, apesar dele, a CEMPD deferiu os processos dos sete militantes.
Seguem os relatos sobre cada um deles no livro-relatório Direito à Memória e à Verdade.
Marcos Antônio da Silva Lima (1941-1970)
Número do processo: 285/96
Filiação: Clarice da Silva Lima e Joaquim Lucas de Lima
Data e local de nascimento: 21/10/1941, João Pessoa (PB)
Organização política ou atividade: PCBR
Data e local da morte: 14/01/1970, Rio de Janeiro (RJ)
Relator: Luís Francisco Carvalho Filho
Deferido em: 09/02/1998 por 4×3 (votos contra de Paulo Gustavo Gonet Branco, João Grandino Rodas e general Oswaldo Pereira Gomes)Paraibano de João Pessoa, afrodescendente e ex-sargento da Marinha, Marcos Antônio da Silva Lima foi um dos fundadores e, por duas vezes, vice-presidente da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, entidade que comandou importantes mobilizações reivindicatórias e políticas no âmbito da Armada, no período entre 1962 e março de 1964.
Já nas vésperas do movimento que depôs João Goulart, 1113 marinheiros, reunidos em vigília no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, tiveram a prisão decretada por insubordinação aos seus comandantes militares, que já ultimavam, àquela altura do calendário, os últimos preparativos para o Golpe de Estado.
Marcos Antônio estudou no Colégio Lins de Vasconcelos, em João Pessoa, na Escola Técnica de Comércio, em Campina Grande, e no Colégio Estadual Liceu Paraibano, também em João Pessoa. Ainda na Paraíba, foi jogador de futebol pelo time Estrela do Mar. Em 1958, iniciou sua formação de marinheiro na Escola de Aprendizes de Pernambuco. Trabalhou no navio Ary Parreiras e no Porta Aviões Minas Gerais. Como marinheiro de 1ª classe, viajou pelo mundo: Itália, Egito, França, Japão.
Nos primeiros dias de abril de 1964, logo após ouvir pelo rádio a notícia de que havia sido expulso da Marinha por força do primeiro Ato Institucional, buscou asilo na Embaixada do México, deixou o País e transferiu-se para Cuba, onde recebeu treinamento de guerrilha num primeiro grupo de ex-militares que, sob a liderança de Leonel Brizola, constituíram o MNR, sigla às vezes traduzida como Movimento Nacional Revolucionário e, outras vezes, como Movimento Nacionalista Revolucionário. Em outubro de 1964, foi condenado a nove anos de prisão e, em 1966, a mais três anos.
Retornando ao Brasil para engajar-se na resistência clandestina, instalou-se no Mato Grosso, em articulação com os militantes do MNR que tentaram organizar uma guerrilha na Serra do Caparaó entre fins de 1966 e abril de 1967. Nesse período, Marcos Antônio foi preso em São Paulo e transferido para a Penitenciária Lemos Brito, no Rio de Janeiro, ali chegando em março de 1967.
Marinheiros e outros militantes ali reunidos, em boa parte militares, recrutaram alguns presos comuns e constituíram nova organização, denominada Movimento de Ação Revolucionária – MAR, que protagonizou audaciosa fuga daquele presídio, em 26/05/1969, escondendo-se o grupo na área rural de Angra dos Reis, até romper o cerco militar após algumas semanas. Mesmo assim, o MAR durou poucos meses, sendo que Marcos Antônio e a maioria de seus integrantes se engajaram no PCBR.
Na noite do dia 14/01/1970, já moribundo, com uma bala na cabeça, foi deixado no Hospital Souza Aguiar, como desconhecido, morrendo em poucos minutos. Sua mulher recebeu por telefone a notícia da morte, com a orientação de aguardar a publicação do fato, para que não viesse a ser interrogada sobre suas próprias atividades e sobre como recebera a informação. A notícia somente foi divulgada uma semana depois, através de nota do comando da 1ª Região Militar, informando que Marcos Antônio morrera num tiroteio onde foi ferida e presa Ângela Camargo Seixas, também do PCBR, e dois agentes dos órgãos de segurança.
O laudo de necropsia é assinado pelo legista Nilo Ramos de Assis, que definiu como causa mortis“ferida transfixante do crânio com destruição parcial do encéfalo”. A irmã de Marcos Antônio, Marlene Lucas de Lima, só conseguiu retirar o corpo no dia 20 de janeiro, levando-o para sepultamento no Cemitério de Inhaúma.
A CEMDP fez diligências ao Hospital Souza Aguiar, que respondeu não possuir qualquer registro do fato, e também às autoridades militares, buscando mais detalhes sobre a operação e a identificação dos agentes feridos. Não recebeu resposta.
Depoimento de Ângela Camargo Seixas, em declaração pública enviada da Irlanda, onde vivia depois de exilar-se na Inglaterra, esclareceu amplamente os fatos. Relatou que Marcos Antônio e ela chegavam a sua casa, por volta das 23 horas do dia 13, e Marcos estava colocando a chave na porta quando os agentes de segurança, que já estavam no apartamento, começaram a atirar. O prédio estava cercado e, ao buscarem fugir pelas escadas, viu quando Marcos foi atingido. Ferida, perdeu a consciência e não sabe quanto tempo depois acordou, ainda no corredor, sendo presa.
O relator do processo junto à CEMDP considerou que as provas apresentadas apontavam para a eliminação do militante, tomando como base esse depoimento, onde ficava claro que Marcos portava, mas não empunhava arma, e que não fora feita perícia de local, prática comum no Rio de Janeiro e, neste caso, do interesse dos agentes, já que houve policiais feridos. Considerou também significativo o silêncio das autoridades militares, que não ofereceram qualquer informação ou esclarecimento às indagações da Comissão Especial.
Ornalino Cândido da Silva (1949 – 1968)
Número do processo: 004/96
Filiação: Dorcília Cândida da Silva e Sebastião Cândido da Silva
Data e local de nascimento: 1949, Pires do Rio (GO)
Organização política ou atividade: Movimento Estudantil
Data e local da morte: 01/04/1968, em Goiânia
Relator: João Grandino Rodas, com vistas de Nilmário Miranda e do general Oswaldo Pereira Gomes
Deferido em: 15/05/97, por 4×3 (contra João Grandino Rodas, Paulo Gustavo Gonet e general Oswaldo Pereira)
Ornalino
Cândido da Silva foi morto aos 19 anos, numa outra manifestação
estudantil em protesto contra o assassinato de Edson Luiz Lima Souto, no
quarto aniversário do regime ditatorial, desta vez em Goiânia (GO), dia
01/04/1968, com um tiro na cabeça disparado por policiais que o
confundiram com outro estudante. Filho de família pobre, começou a
trabalhar desde cedo como lavador de carros. Era casado com Maria Divina
da Silva Silvestre, com quem teve um filho.Na noite anterior à passeata, Ornalino havia ajudado a confeccionar os cartazes de protesto no Diretório Central dos Estudantes, e convocou seus amigos para a manifestação. No dia seguinte à sua morte, o jornal O Social informou:
“Traindo a palavra empenhada ao arcebispo metropolitano e ao bispo auxiliar de Goiânia, o coronel Pitanga, secretário de Segurança Pública de Goiás e comandante da Polícia Militar, determinou que seus comandados armassem criminosa cilada contra os estudantes, que após o comício retiravam-se pacificamente, rumo à Faculdade de Direito.(…) Armados com fuzis, metralhadoras, bombas, cassetetes e revólveres, os militares cometeram toda sorte de violências, culminando com o fuzilamento de um transeunte, que, alheio ao Movimento Estudantil, postava-se nas imediações do Mercado Central, quando foi mortalmente atingido por um sargento da Polícia Militar, que, deliberadamente, sacou seu revólver, apontou para o jovem desconhecido e acionou o gatilho, julgando, talvez, tratar-se do líder estudantil Euler Vieira, dada a semelhança física entre o desconhecido e o estudante”.
Com efeito, depoimentos incorporados ao processo na CEMDP confirmam a grande semelhança física entre Ornalino e Euler Ivo Vieira, destacada liderança estudantil de Goiás naquela época, bem como registram ameaças explícitas que foram dirigidas a Euler nas vésperas, que chegou a receber pedidos para não participar da mobilização porque seria morto pelos policiais.
Autoridades do Estado sustentaram que houve tiroteio. Mas o tiro foi certeiro, na região temporal esquerda da cabeça, o que seria difícil se Ornalino estivesse correndo. O presidente do Grêmio Literário Felix de Bulhões, do Colégio Estadual de Goiânia, Allan Kardek Pimentel, disse que o estudante, mesmo precisando trabalhar para se sustentar, não deixava de participar das mobilizações, e tinha consciência do momento político. “Ele tinha uma profunda percepção do papel da juventude naquele ano difícil. Ele era o mascote do grupo”, contou Allan.
Seu enterro teve a participação de muitos estudantes. Documentos particulares do morto não foram juntados, sob a alegação de terem desaparecido. Buscas empreendidas pela família em cartórios e na Secretaria de Segurança Pública, com o intuito de obter 2ª via, resultaram infrutíferas. O único documento anexado foi o atestado de óbito.
O relator do processo na CEMDP votou pelo indeferimento, por considerar que o caso não se enquadrava na Lei nº 9.140/95, em virtude de não ter havido qualquer comprovação de participação ou acusação de participação em atividades políticas. Foi feito um pedido de vistas ao processo, para ser anexados documentos confirmando a participação política de Ornalino. O relatório foi apresentado em 24/04/1997, e houve novo pedido de vistas. Mesmo com o voto contrário do novo relatório, em 15/05/1997 a CEMDP deferiu o processo em votação apertada, de 4 a 3.
Alceri Maria Gomes da Silva (1943-1970)
Número do processo: 060/96
Data e local de nascimento: 25/05/1943, Cachoeira do Sul (RS)
Filiação: Odila Gomes da Silva e Oscar Tomaz da Silva
Organização política ou atividade: VPR
Data e local da morte: 17/05/1970, São Paulo (SP)
Relator: Paulo Gustavo Gonet Branco
Deferido em: 18/03/1996 por 5×2 (votos contra do general Oswaldo Pereira Gomes e João Grandino Rodas)
Embora
militante de organização clandestina distinta, Alceri Maria Gomes da
Silva foi morta junto com Antônio dos Três Reis de Oliveira (ALN, 22
anos) no dia 17/05/1970, em São Paulo. Ambos os nomes constam do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos, Alceri na lista de mortos e Antonio como desaparecido.
Alceri,
gaúcha de Porto Alegre e afrodescendente, trabalhava no escritório da
fábrica Michelletto, em Canoas, onde começou a participar do movimento
operário e filiou-se ao Sindicato dos Metalúrgicos. Em setembro de 1969,
visitou sua família em Cachoeira do Sul para informar que estava de
mudança para São Paulo, engajada na luta contra o regime militar. Após
sua morte, a família viveu um verdadeiro processo de desestruturação. O
pai, desgostoso, morreu menos de um ano depois de saber, por um delegado
de Canoas, que a filha fora morta em São Paulo. Uma de suas irmãs,
Valmira, também militante política, não suportou a culpa que passou a
sentir por ter permitido que a irmã saísse de sua casa. Suicidou-se
ingerindo soda cáustica.Antônio era natural de Tiros, Minas Gerais. Fez o curso ginasial no Colégio Nilo Cairo e estudava Economia na Faculdade de Apucarana. Foi membro da União Paranaense de Estudantes e produzia programas para a rádio local, junto com José Idésio Brianesi, também militante da ALN. Foi processado por participar do 30º Congresso da UNE, em 1968, em Ibiúna (SP).
Depoimento dos presos políticos de São Paulo denunciou a morte desses dois militantes por agentes da OBAN, chefiados pelo capitão Maurício Lopes Lima. Ambos foram enterrados no Cemitério de Vila Formosa e os corpos nunca foram resgatados, apesar das tentativas feitas em 1991, a cargo da Comissão de Investigação da Vala de Perus.
As modificações na quadra do cemitério, feitas em 1976, não deixaram registros de para onde foram os corpos dali exumados. Apesar da prisão ou morte de Antônio ter sido negada pelas autoridades de segurança, no Relatório do Ministério da Aeronáutica de 1993 consta que ele morreu no dia 17/05/1970, no bairro do Tatuapé, em São Paulo, quando uma equipe dos órgãos de segurança averiguava a existência de um “aparelho”. Os documentos acerca de sua morte somente foram encontrados na pesquisa feita no IML/SP em 1991. Ali, foi localizada uma requisição de exame, assinada pelo delegado do DOPS Alcides Cintra Bueno Filho, determinando que o corpo somente fosse enterrado após a autorização do órgão. Os legistas João Pagenoto e Albeylard Queiroz Orsini assinaram a certidão de óbito, dando como causa da morte lesões traumáticas crânio-encefálicas, causadas por um tiro que penetrou no olho direito e saiu pela nuca. Apesar da confirmação da morte após tantosanos de busca, seu nome continuou a fazer parte da lista de desaparecidos políticos por decisão da Comissão de Familiares.
Alceri foi morta com quatro tiros, de acordo com o laudo necroscópico assinado pelos legistas João Pagenotto e Paulo Augusto Queiroz Rocha, que descrevem ferimentos no braço, no peito e dois que penetraram pelas costas, na coluna. Ao examinar o processo de Alceri, considerou o relator na CEMDP que as circunstâncias de sua morte foram exatamente as mesmas de Antônio, invocando o reconhecimento, por analogia, de que se o falecimento de Antonio atraiu o benefício previsto na lei, a Comissão Especial tivesse como satisfeitos, também em relação a Alceri, os pressupostos para que sua morte fosse enquadrada na Lei nº 9.140/95.
Eiraldo de Palha Freire (1946-1970)
Número do processo: 329/96
Filiação: Walkyria Sylvete de Palha Freire e Almerindo de Campos Freire
Data e local de nascimento: 15/05/1946, Belém (PA)
Organização política ou atividade: ALN
Data e local da morte: 04/07/1970, Rio de Janeiro (RJ)
Relator: Suzana Keniger Lisbôa
Deferido em: 05/05/1998 por 5×2 (votos contra de João Grandino Rodas e Oswaldo Pereira Gomes)
Eiraldo de Palha Freire foi baleado e preso no dia 01/07/1970, no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, por militares da Aeronáutica, quando tentava seqüestrar um avião de passageiros da empresa Cruzeiro do Sul para libertar presos políticos. Também foram presos na mesma operação seu irmão Fernando Palha Freire e o casal Colombo Vieira de Souza Junior e Jessie Jane, militantes da ALN que teriam decidido realizar o seqüestro para libertar o pai de Jessie, preso político em São Paulo como militante da mesma organização. Eiraldo morreu em 04/07/70, no Hospital da Aeronáutica, sendo sepultado pela família no dia seguinte, no Cemitério São Francisco Xavier, no Rio de Janeiro.
Os três presos sobreviventes da tentativa de seqüestro do avião foram formalmente acusados pela morte de Eiraldo, e Colombo indiciado por tê-lo atingido. No decorrer do julgamento, a Promotoria concordou com a versão da defesa de que Eiraldo havia cometido suicídio.
No processo junto à CEMDP, o relatório salienta as diferentes versões contidas nos jornais e documentos oficiais. Numa delas, Eiraldo foi morto por Colombo; em outra, suicidou-se, tendo morte imediata ainda dentro do avião; numa terceira, foi socorrido, morrendo posteriormente.
Na verdade, ficou provado que ele chegou a ser acareado com Jessie Jane no DOI-CODI, na rua Barão de Mesquita, onde estava sendo interrogado. O exame de corpo de delito, realizado um dia antes da morte, no Hospital da Aeronáutica, no Galeão, quando Eiraldo já se encontrava em coma, foi firmado por Fausto José dos Santos Soares e Paulo Erital Jardim, que simplesmente registraram estar baleado. A necropsia, firmada por José Alves de Assunção Menezes e Ivan Nogueira Bastos, descreve algumas escoriações no seu corpo, como na fronte, nariz, incisões cirúrgicas nas regiões temporais e traqueostomia.
O fato inquestionável é que foi visto por Jessie Jane no DOI-CODI e somente foi levado a exame de corpo de delito dois dias depois da prisão. Além disso, tinha, após o exame de corpo de delito, outros ferimentos não descritos no laudo, mas referidos na necropsia.
Em decisão tomada na reunião de 05/05/1998, a CEMDP aprovou o requerimento, por maioria de votos, tendo prevalecido o entendimento de que a soma de contradições entre documentos oficiais, o desencontro entre versões, a prova taxativa de que Eiraldo foi interrogado no DOI-CODI e vários outros indícios convergiam no sentido de recomendar o deferimento.
Edson Neves Quaresma (1939-1970)
Número do processo: 222/96
Filiação: Josefa Miranda Neves e Raimundo Agostinho Quaresma
Data e local de nascimento: 11/12/1939, Apodi (RN)
Organização política ou atividade: VPR
Data e local da morte: 05/12/1970, São Paulo (SP)
Relator: Suzana Keniger Lisbôa
Deferido em: 30/01/1997 por 4×3 (votos contra do general Oswaldo Pereira Gomes, Paulo Gustavo Gonet Branco e João Grandino Rodas)
No
dia 05/12/1970, Edson Neves Quaresma e Yoshitane Fujimori (26 anos),
militantes da VPR, trafegavam de carro pela Praça Santa Rita de Cássia,
na capital paulista, quando foram interceptados por uma patrulha do
DOI-CODI/SP. Os fatos foram relatados à CEMDP por Ivan Akselrud de
Seixas, que por sua vez colheu depoimento, na época, de um motorista de
táxi que presenciara o ocorrido.O taxista descreveu, detalhadamente, que Fujimori caiu no meio da praça e Quaresma numa rua de acesso, sendo carregado por dois policiais e agredido na Praça até a morte. Fujimori chegou com vida ao DOI-CODI/SP, fato declarado a Ivan pelos policiais Dirceu Gravina e “Oberdan” durante seu interrogatório naquela unidade de repressão política, em 1971.
Nascido em Itaú, que naquela época pertencia ao município de Apodi (RN), Quaresma era afrodescendente e estudou até a quinta série do curso primário em Natal. Em 1958, ingressou na Escola de Aprendizes de Marinheiros, em Recife (PE), da qual saiu como grumete em 1959. Logo em seguida, foi deslocado para o Rio de Janeiro, tendo servido no cruzador Tamandaré. Foi tesoureiro da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil. Após a deposição de João Goulart, ficou preso na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, durante um ano e dois meses. Em 31/12/1964 foi expulso da Armada. A partir de 1965, passou a atuar na clandestinidade, vinculado ao MNR. Viajou para Cuba e lá recebeu treinamento de guerrilha. Teria regressado ao Brasil em julho de 1970, já integrado à VPR.
Quaresma mantinha estreita ligação com o agente infiltrado cabo Anselmo. Depoimento prestado pelo cabo ao DOPS, localizado nos arquivos secretos desse departamento policial, explica que Quaresma tinha retornado de Cuba ao Brasil com a missão de preparar a chegada de próprio Anselmo. No voto da relatora do processo junto à CEMDP existem referências à possibilidade de que a eliminação sumária desses dois militantes, de elevada importância na estrutura da VPR, tenha nexo com a necessidade de manter sob segredo a atuação infiltrada do cabo Anselmo.
Natural de Mirandópolis, interior paulista, Fujimori era técnico em eletrônica e, nas atividades da VPR, os órgãos de segurança já sabiam de sua estreita ligação com Carlos Lamarca, que nessa altura do calendário era considerado o inimigo número 1 do regime militar. Fujimori foi um dos militantes que acompanharam Lamarca no rompimento do cerco imposto a uma área de treinamento da VPR no Vale do Ribeira, em São Paulo, no primeiro semestre daquele ano e um dos acusados de executar a coronhadas o tenente da PM paulista Alberto Mendes Junior.
Ambos foram sepultados como indigentes no Cemitério de Vila Formosa, Quaresma, sob nome falso. Os laudos de necropsia foram assinados por Harry Shibata e Armando Canger Rodrigues. A solicitação de exame necroscópico de Quaresma foi feita pelo delegado do DOPS Alcides Cintra Bueno Filho e registra que o corpo deveria ser fotografado de frente e perfil. Mas não foram encontradas fotos de seu corpo, que deu entrada no IML quatro horas depois do suposto horário da morte. O laudo registra que uma das cinco balas encontradas em seu corpo atingiu as costas e as outras quatro foram disparadas na cabeça, uma na região auricular direita. A relatora argumentou, em seu parecer, que era praticamente impossível uma pessoa morrer em tiroteio com quatro tiros na cabeça.
A CEMDP encaminhou os documentos relativos à morte de Fujimori para laudo do perito Celso Nenevê, que produziu a prova mais importante utilizada pela relatora. Analisando a trajetória dos tiros, o perito concluiu que três dos quatro projéteis que penetraram na face direita foram dados com o corpo de Fujimori em posição inferior, ou seja, caído ou deitado. Por maioria de votos, a CEMDP considerou que Edson e Yoshitane foram executados sob a guarda do Estado. Os processos foram relatados em conjunto, mas as discussões foram feitas em separado, resultando em votações diferenciadas. Votou contra o processo de Fujimori o general Oswaldo Pereira Gomes.
Jeová Assis Gomes (1948-1972)
Número do processo: 171/96
Filiação: Maria José Assis Gomes e Luiz Gomes Filho
Data e local de nascimento: 24/08/1943, Araxá (MG)
Organização política: MOLIPO
Data e local da morte: 09/01/972, Guaraí (GO, hoje TO)
Relator: Nilmário Miranda
Deferido em: 10/12/1996 por 4×3 (votos contra do general Oswaldo Pereira Gomes, Paulo Gustavo Gonet Branco e João Grandino Rodas)
Jeová
Assis Gomes foi o terceiro banido a ser morto depois de retornar
clandestinamente ao Brasil, engajado na resistência armada ao regime
militar. Já tinham encontrado o mesmo destino, em 1971, Aderval Alves
Coqueiro e Carlos Eduardo Pires Fleury. Começa a se caracterizar, dessa
forma, a existência de uma possível sentença extra-judicial de
condenação à morte dos banidos que retornassem. O jornalista Elio
Gaspari escreveria muitos anos depois, em A Ditadura Escancarada: “A
sentença de morte contra os banidos autodocumenta-se. Entre 1971 e 1973
foram capturados dez. Nenhum sobreviveu”.
Nascido em Araxá (MG), Jeová era uma liderança entre os estudantes de Física na USP, destacando-se também nas mobilizações dos moradores no CRUSP – conjunto residencial da Universidade. Em 1966, liderou a “Greve das Panelas”, que se realizou no CRUSP e precedeu a efervescência de 1968. Com a decretação do AI-5, em dezembro desse ano, o CRUSP, onde moravam 1.500 universitários, foi cercado, os prédios desocupados e muitos estudantes foram presos. Jeová, que na época era um dos dirigentes da DISP – Dissidência Estudantil do PCB/SP, foi expulso do CRUSP e da USP, já procurado pelos órgãos de segurança. Passou a atuar em Brasília e Goiás, transferindo-se com muitos outros militantes daquele agrupamento dissidente para a ALN, em 1969.
Preso em 12/11/1969 em Goiás, pela militância na ALN, foi transferido para a OBAN, onde sofreu torturas que lhe causaram fraturas nas duas pernas. Permaneceu preso até junho de 1970, quando foi banido para a Argélia em troca do embaixador alemão Von Holeben, seqüestrado numa operação conjunta entre VPR e ALN. Da Argélia viajou para Cuba, recebeu treinamento militar naquele país e retornou clandestinamente ao Brasil em 1971, como militante do MOLIPO, com a tarefa de construir uma base de guerrilha na área rural. Em 09/01/1972, Jeová foi localizado e morto em um campo de futebol em Guaraí (Goiás na época, hoje Tocantins). Documentos dos órgãos de segurança o apontavam como coordenador nacional do Molipo, ao lado de Antonio Benetazzo e Carlos Eduardo Pires Fleury.
A família recebeu a notícia da morte de Jeová por meio da imprensa, na noite do dia 16/01/1972. Seu irmão foi até Guaraí, onde obteve informações de que Jeová fora morto com um tiro pelas costas e estava enterrado num cerrado na periferia da cidade. Não conseguiu o laudo, tampouco certidão de óbito e a remoção dos restos mortais. No primeiro comunicado oficial dos órgãos de segurança sobre o caso, distribuído à imprensa, as autoridades do regime militar afirmaram: “no último domingo, foi morto a tiros, na cidade de Guaraí, norte de Goiás, o terrorista Jeová Assis Gomes, ao tentar resistir à voz de prisão que lhe fora dada por agentes policiais”.
Uma segunda versão, divulgada em Brasília três dias depois, relata que:
“A equipe de segurança abordou o referido elemento, convidando-o discretamente a acompanhá-la para fora do pequeno estádio. Aquiesceu, deslocando- se cerca de 15 metros, quando se jogou no chão, puxando do bolso uma granada, na tentativa de acioná-la, no que foi impedido a tiros pelos agentes, no interesse de evitar um morticínio de largas proporções de populares inocentes”.
Nilmário Miranda, relator do processo na CEMDP, apresentou o relatório do então delegado de Guaraí, 2º Sargento da PM, José do Bonfim Pinto que informava:
“aos nove dias de janeiro de 1972, por volta das 15h30min, desembarcou nesta cidade, procedente do sul, um indivíduo que, mais tarde foi identificado como Jeová Assis Gomes, terrorista de destaque da ALN. Tomou quarto num hotel local, onde deixou uma pasta que trazia ao desembarcar. Mais ou menos às 16h, rumou para o acampamento da Rodobrás, em cuja quadra de esportes era disputada uma partida de futebol. Ali se misturou com o povo. Por volta das 16h30min foi abordado por uns senhores, que mais tarde se identificaram como agentes do DOI-CODI/11º RM, os quais, procurando afastá-lo do meio do povo, deram-lhe voz de prisão, chamando-o pelo nome. Vendo- se identificado, empurrou dois dos agentes e tentou empreender fuga, forçando um dos agentes a alvejá-lo. Dado a posição que recebeu o projétil (tórax), teve morte instantânea”.
O delegado conclui descrevendo o que fora encontrado na pasta: mapas de Goiás, bússola, roupas, documentos, um revólver 38, munição, e uma bomba de fabricação caseira. Posteriormente, em 15 de setembro, o mesmo delegado encaminhou correspondência ao Secretário de Segurança de Goiás, dizendo que, estando impossibilitado de abrir inquérito para investigar a morte de Jeová, remetia todo o material existente em sua Delegacia.
No voto na CEMDP, Nilmário Miranda construiu uma detalhada comparação entre o relatório do delegado local e a versão divulgada pelos órgãos de segurança, realçando cada uma das inúmeras contradições entre ambos. Ressaltou que os agentes que ali desembarcados, procedentes de Brasília, sabiam que Jeová estaria no campo de futebol; e que a versão divulgada, três dias depois fora preparada para justificar uma execução.
Considerando a evidente política de extermínio dos banidos que voltassem ao país, Nilmário concluiu:
“os
agentes repressivos foram a Guaraí para eliminá-lo; caso contrário,
teriam-no algemado no ato da prisão. Se era considerado ‘perigoso
terrorista’, provável chefe da futura guerrilha, não iriam convidá-lo
‘discretamente’, e sim imobilizá-lo imediatamente para prendê-lo,
algemá-lo e revistá-lo”.
Na sessão em que a CEMDP julgou o caso, após discussão ampla, ocorreu empate na votação do processo referente a Jeová. O presidente Miguel Reale Jr. desempatou a votação: “ninguém iria levar uma granada para um campo de futebol e deixar a arma no hotel. Estava desarmado e a possibilidade de domínio era grande. Voto com o relator”.
Com toda a reserva que deve recobrir a credibilidade de um texto como o “livro secreto do Exército”, divulgado em abril de 2007 pelo jornalista Lucas Figueiredo, cabe registrar neste livro-relatório um pequeno trecho de sua página 694: “Boanerges de Souza Massa continuou entregando tudo. Abriu um ‘ponto’ que teria com Jeová Assis Gomes, em Guaraí, no Estado de Goiás, no dia 10 de janeiro de 1972. A equipe policial chegou à localidade no dia 9 de janeiro e, com a ajuda de Boanerges, Jeová foi localizado nas arquibancadas de um campo de futebol, assistindo a uma partida. Ao receber voz de prisão, Jeová retirou uma granada de uma sacola e tentou sacar o grampo de segurança para lançá-la. Pressentindo a tragédia que a explosão causaria no estádio, a equipe policial atirou matando Jeová”
Em 2 de junho 2005 o então presidente da CEMDP, Augustino Veit, juntamente com a assessora Iara Xavier foram à cidade de Guaraí com a finalidade de buscar informações sobre as circunstâncias da morte de Jeová e localizar sua sepultura para posterior exumação e identificação. As informações obtidas confirmaram que Jeová foi abordado no campo de futebol da Rodobrás. Ficou confirmado que as autoridades policiais vindas de Brasília poderiam ter efetuado a prisão de Jeová, mas preferiram fuzilá-lo perante centenas de pessoas que assistiam a um jogo de futebol. A versão foi confirmada pelo soldado militar Sebastião de Abreu, que realizou o enterro. A partir de diversos depoimentos, conseguiu-se localizar a possível sepultura.
Em 12 de outubro de 2005, a polícia técnica de Brasília fez escavações para exumar os restos mortais de Jeová. As escavações foram acompanhadas pelo irmão de Jeová, Luís Antonio Assis Gomes que foi à cidade de Guaraí uma semana depois do assassinato, mas nem o soldado Sebastião Abreu e tampouco o irmão souberam precisar o local da sepultura. Ficou confirmado, no entanto, que Jeová foi assassinado em 09/01/1972, por volta das 16h, numa demonstração de força dos agentes federais. É certo também que Jeová foi enterrado no cemitério da cidade.
Almir Custódio de Lima (1950-1973)
Número do processo: 123/96
Filiação: Maria de Lourdes Guedes de Lima e João Custódio de Lima
Data e local de nascimento: 24/05/1950, Recife (PE)
Organização política ou atividade: PCBR
Data e local da morte: 27/10/1973, Rio de Janeiro (RJ)
Relator: general Oswaldo Pereira Gomes
Deferido em: 18/03/1996 por 5×2 (votos contra do general Oswaldo Pereira Gomes e de João Grandino Rodas)
Almir
foi morto pelos órgãos de segurança do regime militar em 27/10/1973, no
Rio de Janeiro, com outros três militantes do PCBR: Ramires Maranhão do
Valle (23 anos), Ranúsia Alves Rodrigues (28 anos) e Vitorino Alves
Moitinho (24 anos).
A cena para legalização das execuções foi
montada na Praça Sentinela, em Jacarepaguá. Ramires, Almir e Vitorino
aparecem totalmente carbonizados dentro de um Volkswagen, enquanto o
corpo de Ranúsia jaz baleado, embora não queimado. Foram esses os
últimos membros do PCBR a serem mortos no longo ciclo do regime militar,
encerrando a série iniciada com o assassinato sob torturas de Mário
Alves, principal dirigente e fundador do partido, em janeiro de 1970, no
DOI-CODI/RJ. Em outubro de 1973, quando dessas últimas quatro mortes, o
PCBR já estava reduzido a um pequeno círculo de militantes.
No dia 29/10/1973, a imprensa carioca apenas noticiou a morte de dois casais em Jacarepaguá. O Jornal do Brasil estampou “Polícia especula, mas nada sabe ainda sobre os casais executados em Jacarepaguá”, enquanto O Globo noticiou: “Metralhados dois casais em Jacarepaguá”.
Nenhum dos jornais citou nomes dos mortos. O mesmo ocorreu na matéria da revista Veja, de 07/11/1973, “Quem Matou Quem?”. Somente em 17/11/1973, tanto em O Globo, quanto no Jornal do Brasil, respectivamente, sob os títulos “Terroristas Morrem em Tiroteio com as Forças de Segurança” e “Terroristas São Mortos em Tiroteio”, se lê: “em encontro com forças de segurança, vieram a falecer, após travarem cerrado tiroteio, quatro terroristas, dois dos quais identificados como Ranúsia Alves Rodrigues, ‘Florinda’, e Almir Custódio de Lima, ‘Otávio’, pertencentes à organização clandestina subversiva intitulada PCBR”.
Os nomes de Vitorino e Ramirez não foram citados nas matérias e, como conseqüência, esses dois militantes passaram a figurar nas relações de desaparecidos políticos, integrando a lista anexa à Lei nº 9.140/95.
No livro "Dos Filhos Deste Solo", Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio assim registraram o episódio:
“Chovia na noite de 27 de outubro de 1973, um sábado. Alguns poucos casais escondiam-se da chuva junto do muro do Colégio de Jacarepaguá, no Rio. Por volta das 22h um homem desceu de um Opala e avisou: ‘Afastem-se porque a barra vai pesar’. O repórter de Veja (7/11/73) localizou alguém que testemunhou o significado desse aviso: ‘Não ouvimos um gemido, só os tiros, o estrondo e a correria dos carros’. (…) Vindos de todas as ruas que levam à Praça, oito ou nove carros foram chegando, cercando um fusca vermelho (AA 6960) e despejando tiros. Depois jogaram uma bomba dentro do carro. No final, havia uma mulher morta com quatro tiros no rosto e peito e três homens carbonizados”.
Todos os corpos deram entrada no IML como desconhecidos e foram necropsiados por Hélder Machado Paupério e Roberto Blanco dos Santos, que confirmaram a versão oficial. A partir de 1991, com os documentos encontrados em arquivos do DOPS foi comprovada a morte dos dois desaparecidos. Documento de informação do Ministério da Aeronáutica de 22/11/1973, de nº 575, encontrado no arquivo do antigo DOPS/SP, afirma:
“dia 27/10/1973, em tiroteio com elementos dos órgãos de segurança da Guanabara, foram mortos os seguintes militantes do PCBR: Ranúsia Alves Rodrigues, Ramires Maranhão do Valle, Almir Custódio de Lima e Vitorino Alves Moitinho”.
Apesar de os quatro militantes estarem perfeitamente identificados, os órgãos de segurança omitiram as mortes de Ramirez e Vitorino e ainda enterraram todos sem identificação, como indigentes, no cemitério Ricardo deAlbuquerque, Rio de Janeiro.
Em 02/04/1979, seus restos mortais foram transferidos para o ossuário geral e, por volta de 1980 ou 1981, para uma vala clandestina com cerca de duas mil outras ossadas.
No arquivo do DOPS/RJ foi encontrado um documento do I Exército, de 29/10/1973, que narra o cerco aos quatro militantes desde o dia 08/10/1973, culminando com a prisão de Ranúsia na manhã do dia 27/10/1973. O documento inclui interrogatório e declarações de Ranúsia no DOI-CODI/RJ.
O relatório fala de farta documentação encontrada com ela e menciona a morte dos quatro militantes, dando-lhes os nomes completos. A versão divulgada pelo DOPS é que os militantes do PCBR perceberam a presença de “elementos suspeitos” e tentaram fugir, acionando suas armas. Como o carro teria começado a pegar fogo, não foi possível retirar as pessoas que estavam dentro. Laudo e fotos da perícia no local mostram Ranúsia morta perto do carro, tendo ao fundo um Volkswagen incendiado, onde estavam carbonizados Ramires, Vitorino e Almir.
A CEMDP analisou os processos de Almir e Ranúsia, visto que os outros dois casos já foram reconhecidos automaticamente pela inclusão no Anexo da Lei nº 9.140/95. Em seu parecer, o relator general Osvaldo Pereira Gomes considerou que a versão oficial era verdadeira, apesar de alguns pontos considerados obscuros. Propôs aprovação somente do processo de Ranúsia, que nos documentos resgatados dos arquivos policiais aparecia como presa, e o indeferimento no caso de Almir.
No entanto, a maioria da CEMDP aprovou os dois processos, considerando que todos foram mortos nas mesmas circunstâncias e que a versão oficial não se sustentava após exame das provas anexadas.
Em tempo 1: Os
votos referem-se apenas aos 11 pedidos que foram deferidos pela
Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, apesar do voto
contrário de João Grandino Rodas.
Sobre esses 11 militantes mortos
ou desaparecidos, transcrevi exatamente o que está publicado no
livro Direito à Memória e à Verdade. Para acessar o relatório na íntegra, basta clicar aqui.
Em tempo 2: Exceto as fotos de Zuzu Angel (Instituto Zuzu Angel) e de Stuart Angel, as demais são as publicadas no livro Direito à Memória e à Verdade.
Resgatar a história desses 11 militantes políticos é importante para que essa tragédia não se repita nunca mais.
Sintonia Fina
"O jornalismo é, antes de tudo e sobretudo, a prática diária da inteligência e o exercício cotidiano do caráter"
(Cláudio Abramo)
(Cláudio Abramo)
Nenhum comentário:
Postar um comentário