O
colunista da Folha Sergio Malbergier sugeriu que a presidenta Dilma
estaria substituindo o “complexo de vira-lata” pelo de “poodle”, ao
fazer exigências à União Européia na cúpula do G-20. Na verdade, a
crítica do jornalista é um perfeito exemplar de outro complexo
tipicamente brasileiro, o "do beija-mão", ideologicamente de direita e
que assola a vida nacional desde os tempos coloniais.
Berlim
- Muito se tem falado recentemente sobre o “complexo de vira-lata”,
metáfora do sentimento brasileiro criada por Nelson Rodrigues, para se
referir à política externa brasileira. Hoje, de maneira deselegante, o
colunista da Folha Sergio Malbergier sugeriu que a presidenta Dilma
Rousseff poderia estar substituindo este complexo pelo de “poodle”, ao
fazer exigências à União Européia perante a cúpula do G-20.
A
esquerda acusa a direita de “complexo de vira-lata” por esta querer que
o Brasil se diminua perante as potências ocidentais. A direita acusa a
esquerda do mesmo, e o governo brasileiro, por achar que ambos defendem
um “terceiro-mundismo mofado”. Para mim, a razão nestas acusações fica
com a esquerda, não com a direita, pelo fato de que, entre ambos os
argumentos, coloca-se um outro complexo, que assola a direita em matéria
de política externa, que é o "complexo do beija-mão".
O
complexo do beija-mão é algo que assola a vida brasileira desde os
tempos coloniais, e que consiste em pensar que o que se consegue na vida
não se deve aos próprios méritos, mas sim ao favor dos poderosos. É um
capítulo interessante da ideologia do favor, que tanto governou e nos
governa ainda.
Para esse
complexo, é um absurdo o Brasil se mostrar ostensivamente independente
das potências ocidentais, a ponto de criticar algumas delas em público,
como no caso do G-20, em que a presidenta Dilma vai cobrar medidas mais
duradouras e anti-recessivas da bancada européia. É também absurdo o
Brasil não se alinhar costumeiramente aos Estados Unidos. Por quê?
Porque assim perderemos o beneplácito dos poderosos, e não teremos as
vantagens comerciais que poderíamos ter. Como se o mundo comercial de
hoje fosse regido por esses favores do beija cá dá lá.
Mas
não só isso. Devemos adular também os pequenos emergentes. Para esse
complexo, o Brasil errou redondamente ao não se alinhar ao neogoverno da
Líbia, porque agora, nas prebendas que serão distribuídas como botim
depois do bárbaro linchamento de Gadafi (que deveria ter sido julgado em
Haia), não teremos parte alguma. Como se as potências bombardeiras
deixassem algum espaço espontâneo para quem beijasse as mãos suas ou de
seus apaniguados. A diplomacia brasileira – e nisso acerta – aposta em
outra coisa, na multilateralidade de sua abordagem da cena
internacional, tanto do ponto de vista comercial como do político.
Porque
assim é o mundo contemporâneo: multilateral, não mais bi nem unipolar. É
claro que existem considerações de natureza ética na política
internacional. Apoiar uma resolução do Conselho de Segurança da ONU
sobre uma “no-fly zone” na Líbia que vai servir na verdade para
bombardear um dos lados da questão em detrimento de outro, inclusive
para matar o líder desse lado em questão, não é ético. Além disso, não é
pragmático: o Brasil perderia o perfil que vem laboriosamente
construindo num mundo multi-lateral que inclui, além do Ocidente em
crise monetária, fiscal, econômica e política, os BRICS, o G-20, a
América Latina, a África subsaariana, o Oriente Médio, para dizer o
mínimo e o máximo.
Tudo isso
remonta a dizer que o mundo íntimo da nossa direita é completamente
anacrônico. Ele não consegue visualizar a estatura que o Brasil atingiu
na cena internacional. Também não consegue visualizar a própria cena
internacional, que é bem mais complexa do que um jogo de mocinho e
bandido ou de gato e rato.
Uma
última observação. Toda a ironia tem dois gumes, a gente sabe. É bom
lembrar que na época em que Nelson Rodrigues criou a metáfora do
“complexo de vira-lata” o modelo ideal de cachorro era o pastor alemão,
de triste memória (o modelo ideal, não o cachorro que, deixado a seu
instinto, é de índole boa e pacífica).
Sintonia Fina - Flávio Aguiar - Correspondente da Carta Maior em Berlim
Nenhum comentário:
Postar um comentário