Por sugestão do professor Fábio Konder Comparato, reproduzimos
artigo do Estadão desta sexta-feira:
Por Naomi Wolf, do Project Syndicate
Ao que parece, os políticos
estão fartos da democracia. Por todo os EUA, a polícia, atuando sob as
ordens das autoridades locais, vem pondo fim aos acampamentos montados
pelos manifestantes do movimento Ocupe Wall Street. Às vezes com uma
violência escandalosa e totalmente gratuita.
No pior incidente até agora,
tropas de choque cercaram o acampamento dos integrantes do movimento em
Oakland e dispararam balas de borracha (que podem ser fatais), bombas de
efeito moral e granadas de gás lacrimogêneo, com alguns policiais
investindo diretamente contra os manifestantes. No canal do Twitter do
Ocupe Oakland surgiu uma notícia como se fosse sobre Praça Tahrir do
Cairo “eles estão nos cercando; centenas e centenas de policiais; há
veículos blindados e tanques”. Foram presas 170 pessoas.
Minha recente prisão, embora eu
tenha obedecido as exigências contidas na autorização e realizado um
protesto pacífico numa rua em Manhattan, trouxe a realidade da repressão
bem próxima de nós. Os Estados Unidos estão acordando para o que foi
criado enquanto dormiam: empresas privadas contrataram sua polícia (a JP
Morgan doou US$ 4,6 milhões para a Fundação da Polícia da Cidade de
Nova York); e o Departamento Federal de Segurança Interna forneceu às
forças policiais municipais armas de padrão militar. Os direitos à
liberdade de expressão e de reunião do cidadão foram prejudicados
sorrateiramente por critérios opacos para obter as autorizações.
Repentinamente, os EUA
assemelham-se ao restante do mundo que não é completamente livre, está
furioso e protesta. De fato, muitos comentaristas não conseguiram
entender completamente que uma guerra mundial está ocorrendo, mas que
esse conflito é diferente de qualquer outro na História da humanidade.
Pela primeira vez, as pessoas no mundo todo não estão se identificando e
se organizando com base em posições religiosas ou nacionais, mas em
termos de consciência global e as demandas são de uma vida pacífica, um
futuro sustentável, justiça econômica e democracia. Seu inimigo é a
“corporatocracia” que comprou governos e parlamentos, criou suas forças
armadas, engajou-se numa fraude econômica sistêmica e saqueou
ecossistemas e tesouros.
Em todo o mundo, os
manifestantes pacíficos são satanizados como desordeiros. Mas a
democracia é desordeira. Martin Luther King afirmou que a desordem
pacífica é saudável, pois expõe a injustiça sepultada, que pode, então,
ser restaurada. O ideal é que os manifestantes se dediquem a uma
desordem disciplinada, não violenta, com esse espírito – especialmente a
desordem do trânsito, que serve para manter os provocadores à distância
e ao mesmo tempo deixar clara a militarização injusta da resposta
policial.
Além disso, movimentos de
protesto não têm sucesso em horas ou dias; manifestações geralmente
implicam sentar num lugar ou “ocupar” áreas por longos períodos. Esta é
uma razão pela qual os manifestantes devem arrecadar seu dinheiro e
contratar seus advogados. O mundo corporativo está aterrorizado com a
possibilidade de os cidadãos reivindicarem o Estado de direito. Em todos
os países os manifestantes devem responder com um exército de
advogados.
Comunicação. Eles devem criar a
própria mídia, em vez de depender de agências de notícias tradicionais
para cobrir seus protestos. Devem manter blogs, tuitar, escrever
editoriais e comunicados de imprensa, assim como registrar e documentar
casos de abusos da polícia.
Infelizmente, existem muitos
casos documentados de provocadores violentos infiltrando-se nas
manifestações em locais como Toronto, Pittsburgh, Londres e Atenas –
pessoas que, segundo me disse um grego, são “desconhecidos conhecidos”.
Os provocadores também devem ser fotografados e registrados e por isso é
importante não cobrir o rosto durante um protesto.
Os manifestantes nas
democracias têm de criar listas de e-mail locais, combinar suas listas
com as nacionais e começar a registrar os eleitores. Devem dizer a seus
representantes quantos eleitores registraram em cada distrito e devem se
organizar para destituir políticos que são brutais ou agressivos. E
precisam apoiar aqueles – como em Albany e Nova York, por exemplo, onde a
polícia e o Ministério Público locais recusaram-se a reprimir com
brutalidade os manifestantes – que respeitam os direitos de liberdade de
expressão e de reunião.
Muitos manifestantes insistem
em continuar sem uma liderança, o que é um erro. Um líder não tem de se
colocar no topo de uma hierarquia: pode ser um simples representante.
Eles devem eleger representantes com um “mandato” limitado, como em
qualquer democracia, e treinar essas pessoas para conversar com a
imprensa e negociar com políticos.
Os protestos devem ser o modelo
da sociedade civil que se pretende criar. No Parque Zuccotti, em
Manhattan, por exemplo, há uma biblioteca e uma cozinha; o alimento é
doado; as crianças são convidadas a passar a noite ali; e aulas são
organizadas. Músicos trazem seus instrumentos e a atmosfera deve ser
alegre e positiva. Os manifestantes devem procurar manter a limpeza. A
ideia é criar uma nova cidade dentro de uma cidade corrompida e mostrar
que ela reflete o desejo da maioria e não de uma camada destrutiva e
marginal.
Afinal, o que há de mais
profundo no caso dos movimentos de protesto não são as demandas, mas sim
a infraestrutura nascente de uma humanidade comum. Por décadas o que se
tem dito aos cidadãos é que se deve manter a cabeça baixa – seja num
mundo de fantasia consumista ou na pobreza e na labuta – e deixar a
liderança para as elites. O protesto é transformador precisamente porque
as pessoas emergem, encontram-se face a face e, ao reaprender os
hábitos da liberdade, criam novas instituições, relacionamentos e
organizações.
Nada disso pode ocorrer num
ambiente de violência policial e política contra manifestações
democráticas e pacíficas. Como indagou Berthold Brecht, após a brutal
repressão dos comunistas alemães orientais, em junho de 1952, “não seria
mais fácil…para o governo dissolver o povo e eleger um outro?”. Por
toda a parte nos Estados Unidos, e em muitos outros países, líderes
supostamente democráticos parecem estar considerando seriamente a
irônica pergunta de Brecht.
TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
Naomi Wolf é ativista política e
crítica social. Seu livro mais recente é “Give me liberty: a handbook
for American revolutionaries”.Além de “O Mito da Beleza”, seus outros
livros publicados no Brasil são Fogo com Fogo, Promiscuidades: a Luta
Secreta para Ser Mulher.
Sintonia Fina - Conversa Afiada
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