Não há risco algum, para os especialistas militares e civis, melhor ainda para os seus mandantes .
O
Sintonia Fina, junto com o Conversa Afiada reproduzem editorial do Mino Carta, na edição
da Carta Capital desta semana:
O repórter Armando Salem, esticado
na cama diante da televisão, assiste a um programa espera do sono, é
meia-noite.Alguém bate à porta, a fiel doméstica: “Seu Armando, três
senhores chegaram, querem vê-lo, é urgente”. O repórter pensa em alguém
da redação chegado em má hora, pragueja, mas calça os chinelos e desce a
escada do sobrado. Não alcança o último degrau, mãos poderosas o
agarram e o carregam, jardim afora, até jogá-lo, não há precipitação na
escolha do verbo, no banco traseiro de um veículo de sinistra memória, a
C14 da polícia política. Tempo de ditadura, 1971.
Levado ao Dops, prédio central em
São Paulo, catadura albiônica, tijolos à mostra, o repórter encara a
figura maciça do delegado Sergio Paranhos Fleury, ícone, diríamos hoje
em dia, dos torturadores nativos. Ali está ele, com seu álgido olhar,
porque no aparelho de Joaquim Câmara Ferreira, dito O Velho, o líder
comunista assassinado, foi encontrado o calhamaço de uma comprometedora
pesquisa realizada por uma equipe da revista Veja encabeçada por
Raymundo Pereira e da qual Armando Salem participou. Como se deu que
estivesse no covil do grande subversivo?
A pesquisa destinara-se a embasar
uma longa, exaustiva reportagem de capa sobre tortura, finalmente
publicada em edição apreendida nas bancas em fins de 1969. No meio da
papelada recolhida por Fleury, um bilhete: convoca Salem para uma
reunião matinal na redação. Agora o então convocado encolhe-se em uma
cadeira e repete sem parar: Mino Carta, rua tal, número tal. Meu
endereço.
No dia seguinte, sou levado ao
Dops, é minha vez. O delegado manda esperar em uma sala de paredes
tisnadas, chão de tábuas gastas, no fundo um sofá de almofadas murchas
me oferece assento, enquanto um escombro humano foi abandonado no meio
do cenário em uma cadeira, ao lado de uma mesa habitada por uma
Remington caduca. Outrora talvez se tratasse de um moço, no momento é o
retrato da ruína, camisa rasgada, calças sem cinto, sapatos sem cadarço,
cabeça pensa, braços caídos, olhos mortiços engolidos pelo vácuo de
Torricelli.
A porta se abre, entra Fleury, não
veio para me chamar. Vai firme na direção da vítima, pergunta, tom de
homilia: “Quer um cigarro, um copo de leite?” Aos meus ouvidos não chega
a resposta, vejo, no entanto, o delegado a fincar um cigarro na boca do
infeliz e acendê-lo, sai enfim em passadas largas, e logo vem um
anspeçada para trazer o copo de leite. Ainda aguardei uma hora, enfim
achei-me frente a frente com o delegado. Não sofri violência física,
comigo Fleury preferia rosnar apenas, repetiu mais de uma vez “se eu
quiser, fecho a sua revista”. Não adiantou esclarecer, mais de uma vez,
que Veja é da família Civita.
Sentei-me diante dele mais duas
vezes em dias seguidos. Ao cabo os meus extenuados botões sugeriram que
eu inventasse uma história plausível, inventei, o papelório indigitado
havia sido surrupiado dos arquivos da Editora Abril, ele acreditou, ou
fingiu acreditar, quem sabe estivesse extenuado também. Evoco de súbito o
notável algoz ao ler que o Tribunal Regional Federal de São Paulo acaba
de livrar militares por ações de tortura. Aliás, quantos tribunais para
um país tão carente em matéria de justiça, com um jota que haveria de
ser grande.
Vale a pergunta, de todo modo: e os
torturadores civis? No gênero, Fleury foi um mestre. A tal ponto que
quando do golpe chileno ele e sua turma de especialistas seguiram
diretamente para o estádio de Santiago incumbidos de dar aulas aos
aprendizes locais. Antes Tio Sam entregava tarefas similares a Dan
Mitrione e outros que tais, de repente surgeem cena Fleurye desbanca os
gringos. O mundo sempre se curva. Diga-se que a polícia nativa tem toda
uma tradição neste campo, garantida por recursos genuínos, esquadrões da
morte e paus de arara. A tortura é a pior covardia e quem entre nós a
executa é imbatível no mister.
Lembro dom Paulo Evaristo Arns,
cardeal arcebispo de São Paulo, visitava-o no seu sobrado do Sumaré, ele
me dizia que os torturadores do Brasil sempre viveram em perfeita
impunidade, a serviço da prepotência dos senhores. E vergonhosamente
impunes os mandantes, em tempos de ditadura, pluriestrelados generais e
autênticos donos do poder, amoitados às suas costas, a lhes
subvencionarem os autos de fé. Escreveu Hannah Arendt: quando a verdade
factual é omitida, ela soçobra de vez como um barco furado.
Sintonia Fina
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