A revista Época
teve acesso a documentos inéditos produzidos pelo Cenimar, o serviço de
informações da força naval. Eles revelam o submundo da repressão às
organizações de esquerda durante a ditadura militar
Uma
caixinha de papelão do tamanho de um livro guardou por mais de três
décadas uma valiosa coleção de segredos do regime militar implantado no
Brasil em 1964. Escondidas por um militar anônimo, 2.326 páginas de
documentos microfilmados daquele período foram preservadas intactas da
destruição da memória ordenada pelos comandantes fardados.
Os papéis
copiados em minúsculos fotogramas fazem parte dos arquivos produzidos
pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar), o serviço secreto da
força naval. Ostentam as tarjas de “secretos” e “ultrassecretos”, níveis
máximos para a classificação dos segredos de Estado e considerados de
segurança nacional. Obtido com exclusividade por ÉPOCA, o material
inédito possui grande importância histórica por manter intactos
registros oficiais feitos pelos militares na época em que os fatos
ocorreram.
Para os brasileiros, trata-se de uma oportunidade rara de
conhecer o que se passou no submundo do aparato repressivo estruturado
pelas Forças Armadas depois da tomada do poder em 1964. Muitos dos
mistérios desvendados pelos documentos se referem a alguns dos maiores
tabus cultivados pelos envolvidos no enfrentamento entre o governo
militar e as organizações de esquerda.
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FIM DO SEGREDO A caixa de papelão com os microfilmes de documentos do Cenimar. Ela foi guardada por um militar anônimo por mais de três décadas (Foto: Igo Estrela/ÉPOCA) |
As revelações mais
surpreendentes estão nas pastas rotuladas de “Secretinho”, uma espécie
de cadastro dos espiões nas organizações de esquerda. Fichas e
relatórios do Cenimar identificam colaboradores da ditadura, homens e
mulheres, que atuavam infiltrados nas organizações que faziam oposição,
armada ou não, ao regime militar. Agiam dentro dos partidos, dos grupos
armados e dos movimentos estudantil e sindical.
O trabalho dos
informantes e agentes secretos era pago com dinheiro público e exigia
prestação de contas. Muitos infiltrados eram militares treinados pelos
serviços secretos das Forças Armadas que atuavam profissionalmente.
Outros foram recrutados pelos serviços secretos entre os esquerdistas,
por pressão ou tortura. Havia ainda dezenas de colaboradores eventuais,
simpatizantes do regime, que trabalhavam em setores estratégicos, como
faculdades, sindicatos e no setor público. A metódica organização da
Marinha juntou relatórios, fotografias, cartas e anotações de agentes e
militantes.
Reveladores, os
papéis microfilmados divulgados por ÉPOCA antecipam alguns dos debates
mais importantes previstos para a Comissão da Verdade, cuja lei de
criação foi sancionada recentemente pela presidente Dilma Rousseff.
Aprovada pelo Congresso, a comissão foi criada com o objetivo de
esclarecer os abusos contra os direitos humanos cometidos,
principalmente, durante a ditadura militar. Se investigar a fundo o que
se passou nas entranhas do aparato repressivo, chegará à participação de
militantes de esquerda nas ações que levaram à prisão, à morte e ao
desaparecimento de antigos companheiros.
Durante a luta armada,
as acusações de traição muitas vezes determinaram justiçamentos, com a
execução dos suspeitos pelos próprios integrantes das organizações
comunistas. Isso aconteceu com Salathiel Teixeira, militante do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) que integrou o revolucionário Partido
Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), dissidência do “Partidão”
que migrou para a luta armada. Salathiel terminou morto por companheiros
por suspeita de ter fornecido, sob tortura, informações aos órgãos de
repressão. Os documentos da Marinha mostram como Maria Thereza,
funcionária do antigo INPS do Rio de Janeiro e amiga de Salathiel, foi
recrutada e paga para ajudar a prendê-lo em 1970. A prisão de Salathiel
foi chave para a prisão de dirigentes do partido.
O
Cenimar representava a Marinha na poderosa comunidade de informações do
governo militar, que incluía também os serviços secretos do Exército,
da Aeronáutica, da Polícia Federal e das polícias Civil e Militar. O
marco inicial da estruturação dessa rede que investigava e caçava
inimigos dos militares foi a criação do Serviço Nacional de Informações
(SNI), em 1964, pelo então coronel Golbery do Couto e Silva, um dos
homens fortes dos governos dos presidentes Humberto de Alencar Castelo
Branco, Ernesto Geisel e João Figueiredo.
Para
compreender bem o confronto sangrento entre as Forças Armadas e as
organizações de inspiração comunista, é necessário lembrar o contexto da
época. O mundo vivia a Guerra Fria, período de polarização ideológica
em que Estados Unidos e União Soviética disputavam o controle de regiões
inteiras do planeta. O Brasil importou o conflito internacional. O
governo militar tinha o apoio dos Estados Unidos, e parte da oposição
aderiu aos regimes comunistas, com forte influência de Cuba e China. O
PCB se dividiu em dezenas de siglas adotadas por grupos radicais que
adotaram a luta armada como instrumento para a derrubada dos militares.
O
PCB defendia a via pacífica para a chegada ao poder. Nem assim escapou
da perseguição do aparato repressivo e muitos de seus seguidores foram
mortos e desapareceram com a participação direta da comunidade de
informações. Dentro do PCB sempre se soube que a ação de agentes
infiltrados teve grande responsabilidade nas prisões dos comunistas. Os
documentos do Cenimar revelam que um discreto dirigente do PCB em São
Paulo, Álvaro Bandarra, fez um acordo com os militares em 1968 para
colaborar com a caçada aos integrantes do partido.
Os
documentos do Cenimar mostram ainda como agiram os espiões para ajudar
no desmantelamento de algumas das dissidências do PCB. Os agentes
infiltrados pela Marinha tiveram importante participação na derrocada do
PCBR, da Ação Libertadora Nacional (ALN), da Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR), do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e
da Frente de Libertação Nacional (FLN). Os militantes viviam escondidos
em casas e apartamentos, chamados por eles mesmos de “aparelhos”. Num
tempo em que não havia telefone celular nem internet, marcavam locais de
encontro, conhecidos como “pontos”, com semanas ou meses de
antecedência para garantir o funcionamento das organizações. Num desses
“pontos”, descoberto por um agente secreto de codinome “Luciano”, morreu
Juarez Guimarães de Brito, um dos líderes da VPR, procurado pelo
governo por ter comandado o lendário assalto ao cofre do ex-governador
de São Paulo Adhemar de Barros.
Os
arquivos da Marinha revelam também como os comunistas subestimaram a
força da ditadura e cometeram erros infantis que facilitaram o trabalho
da repressão. Num tempo em que os grampos telefônicos já eram comuns,
guerrilheiros tramavam ações armadas e falavam despreocupadamente ao
telefone. Também convidavam para participar de grupos de ação armada
pessoas que mal conheciam, o que facilitou a infiltração dos agentes
secretos. A fragilidade das organizações de esquerda permitiu a
infiltração do fuzileiro naval Gilberto Melo em entidades do movimento
estudantil no Rio de Janeiro.
A
história de Gilberto guarda grande semelhança com a do mais conhecido
dos agentes duplos da ditadura, José Anselmo dos Santos, conhecido por
“Cabo Anselmo”. Anselmo se tornou conhecido ainda antes do golpe como
presidente da Associação dos Marinheiros, um dos focos de agitação
durante o governo de João Goulart, e depois se infiltrou em organizações
da luta armada como informante da repressão. Gilberto passava os dias
perambulando pelo restaurante Calabouço, local de encontro dos
estudantes e de organização das manifestações contra o regime militar.
Ele viu quando o secundarista Edson Luiz Lima Souto foi morto durante
uma manifestação por policiais no Calabouço, com um tiro no peito, no
dia 28 de março de 1968.
Nos dias
seguintes à morte de Edson Luiz, Gilberto, conhecido no Cenimar como
Soriano, participou das manifestações desencadeadas pelo assassinato,
que culminaram na famosa passeata dos 100 mil, em junho de 1968, no Rio
de Janeiro. Gilberto incorporou tanto o disfarce que terminou preso duas
vezes. Foi espancado e torturado como se fosse um esquerdista. Nunca
revelou que era agente secreto. A morte de Edson foi um dos fatos mais
marcantes daquele período, que culminou com o recrudescimento da
repressão pelo regime militar e a implantação do Ato Institucional
Número 5 (AI-5) no final de 1968.
Os
papéis microfilmados constituem um valioso acervo para a compreensão
dos métodos empregados pelos órgãos de repressão. Por razões óbvias, nos
registros não constam as práticas mais hediondas, como tortura, prisões
ilegais, assassinatos ou desaparecimento de pessoas. Mas eles têm o
mérito de expor personagens e mostrar o roteiro das perseguições aos
inimigos do regime. Os relatórios do Cenimar também registram o
envolvimento de oficiais da Marinha. Eles controlavam a rede de espiões
espalhados pelo país, chefiavam as equipes de busca e coordenavam os
interrogatórios. “Documentos que mostram relatórios de informantes,
contratações e atuação direta são raros”, afirma Carlos Fico, professor
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um dos principais
historiadores do período militar. “Provavelmente (esses documentos)
deveriam ter sido expurgados. Por algum motivo, alguém os salvou.”
O
expurgo mencionado por Fico foi concretizado no acervo do Centro de
Informações da Aeronáutica (Cisa). O Cisa fazia o mesmo trabalho do
Cenimar. Também tinha agentes e controlava elementos infiltrados em
organizações de esquerda. No início do ano, o Arquivo Nacional abriu a
consulta aos documentos acumulados pelo Cisa e entregues um ano antes
pela Aeronáutica. Mas quem for até lá em busca de documentos como os do
Cenimar vai se decepcionar. Não há nada que leve à identidade de agentes
e informantes, seus relatórios, comprovantes de pagamentos, material
que existe fartamente nos arquivos obtidos por ÉPOCA.
Procurada, a
Marinha afirmou desconhecer os documentos do arquivo secreto. “Não foram
encontrados, no Centro de Inteligência da Marinha, registros
pertinentes aos questionamentos apresentados”, afirmou o
contra-almirante Paulo Maurício Farias Alves, diretor do Centro de
Comunicação Social da Marinha.
Até
hoje, a história da ditadura militar no Brasil se revelou aos poucos,
em imprevisíveis divulgações de documentos, relatos contraditórios de
militares e incompletas declarações dos perseguidos pelo regime militar.
Menos de três décadas depois de restaurada a democracia, ainda existem
importantes segredos. Nas próximas semanas, ÉPOCA publicará novos
capítulos dessa história ainda desconhecida.
Sintonia Fina - Com Texto Livre
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