O
Sintonia Fina junto ao Conversa Afiada republica texto de Venício de Lima, extraído da
Carta Maior:
O critério fundamental para
avaliação de qualquer legislação aplicável ao setor de comunicações deve
ser sempre se ela possibilita o aumento da participação de mais e
diferentes vozes no debate público. Outro bom critério é verificar como
se manifestam sobre ela os principais atores envolvidos.
por Venício Lima
“Mudanças na regulação das
comunicações são necessárias, mas precisam ser realistas, sem
contaminações ideológicas dirigistas. Um bom exemplo é o PL 116, que
regula o mercado de TV por assinatura. Após longa negociação entre todos
os interessados, o projeto foi aprovado em instância final no Senado.”
Editorial, O Globo, 22 de setembro de 2011
No dia 12 de outubro,
completou-se um mês que a Presidenta Dilma Roussef sancionou o PLC 116
(antigo PL 29) e o transformou na Lei n. 12.485 que “dispõe sobre a
comunicação audiovisual de acesso condicionado”. Trata-se de uma lei
complexa que, depois de longa tramitação no Congresso Nacional, iniciada
ainda em 2007, havia sido aprovada no Senado Federal no dia 16 de
agosto.
Muito já foi dito e escrito
sobre o tema. Especialistas comprometidos com a democratização das
comunicações têm elogiado a Lei e até mesmo afirmado que aqueles que não
a celebram “ainda não entenderam as mudanças que ocorrem no mundo e
vivem no passado”. Todavia, dúvidas importantes persistem, o debate
continua necessário e algumas questões não podem ser ignoradas,
inclusive a relação da Lei com o inadiável marco regulatório para as
comunicações.
Para se compreender a Lei e algumas de suas questões polêmicas
1. Um dos objetivos da Lei
12.485 é unificar a legislação sobre a TV paga, independente da
tecnologia utilizada. Até aqui existiam legislação e/ou regulamentos
diferentes – e até mesmo conflitantes – para as diferentes modalidades,
isto é, cabo ótico; satélite (Direct-to-Home ou DTH) e micro-ondas
(Multipoint Microwave Distribution Services ou MMDS).
2. A nova Lei, libera
completamente a participação do capital estrangeiro antes permitido para
as operadoras por DTH e MMDS e apenas limitado no cabo (a 49%). A
justificativa é estimular a competição e, segundo defensores da Lei,
oferecer “novas opções de conteúdo audiovisual de qualidade e melhores
serviços, por menores preços”.
Esse é o primeiro ponto
polêmico. Brechas na regulação anterior já possibilitavam a presença do
capital estrangeiro em proporções maiores do que a nominalmente
permitida na TV a cabo. Além disso, como se trata de um setor
estratégico, não deveria haver algum tipo de proteção ao capital
nacional? Haverá incentivo real à competição permitindo-se a entrada no
mercado das teles que são oligopólios globais? Pode-se falar em
competição quando ela ocorre entre uns poucos oligopólios? Os preços dos
serviços atualmente oferecidos por estes oligopólios (telefonia fixa e
móvel) não estão entre os mais elevados do planeta?
3. Defensores da Lei destacam a
distinção que ela estabelece entre os diferentes elos da “cadeia
produtiva” da TV paga, vale dizer: produção, programação, empacotamento e
distribuição. É a primeira vez que isso acontece no Brasil e, diz-se, o
futuro aponta para a necessidade de se separar a regulação da
distribuição daquela da produção de conteúdos audiovisuais. Alega-se,
por exemplo, que na América do Norte, em alguns países da Europa e na
nossa vizinha Argentina, a TV paga já supera a TV aberta. Esse é outro
ponto polêmico.
Os últimos dados
disponibilizados pela ANATEL indicam que, em agosto de 2011, a TV paga
chegava a 11,6 milhões de domicílios, ou seja, a 38,3 milhões de
brasileiros ou cerca de 20% do total da população. A densidade
(assinantes por 100 domicílios) média dos serviços de TV Paga é de 19,4,
mas treze estados estão abaixo dela e há unidades da federação, como o
Piauí, onde a densidade é de apenas 4,3. Ademais, em cada 100 TVs pagas
ligadas nos oito principais mercados brasileiros, mais de 60 sintonizam
os canais de TV aberta na maior parte do tempo [agosto de 2011].
Não nos esqueçamos, todavia,
que o mercado de TV paga não é nada desprezível. Em 2010, seu
faturamento bruto atingiu R$ 1,011 bilhão. Isso representou cerca de 4%
do total da verba destinada à publicidade no país (Projeto Inter-Meios).
Supondo que a TV paga, de fato,
seja o destino pré-determinado para a maioria da população brasileira,
consideradas as imensas diferenças de renda ainda existentes no país, em
quanto tempo teríamos aqui uma situação semelhante, por exemplo, à
Argentina (cerca de 50% da população)? Não conheço (e não encontrei) as
projeções da indústria, mas suponho que ainda vá demorar, se é que vai
acontecer.
Se este raciocínio estiver
correto, não faz sentido celebrar uma Lei por efeitos que ela ainda não
pode ter no que se refere à TV “consumida” por mais de 80% da população
(sem incluir aqueles muitos que a assistem na TV paga). De fato, a Lei
12.485 não se aplica à TV aberta (salvo, por óbvio, nas referencias,
diretas e/ou indiretas, que a ela se faz no texto legal).
Pela Lei 12.485, as empresas
radiodifusoras, produtoras e programadoras não podem atuar diretamente
na distribuição de conteúdos da TV Paga, mas podem controlar até 50% do
capital das prestadoras de serviços de telecomunicações. Já essas
últimas, não podem prestar serviços de radiodifusão de sons e imagens,
produção e programação, e sua participação em empresas com essas
finalidades está limitada a 30%.
Alguns estão fazendo uma
leitura dessa norma como se ela fosse um bem-vindo primeiro controle da
“propriedade cruzada” na mídia brasileira. Na prática, todavia, ela
significa, por exemplo, que a TV Globo (aberta) continuará produzindo e
distribuindo conteúdo e também continuará sócia [em até 50%] da SKY
(americana) e da NET (mexicana). Já a Telefónica de Espanha, por
exemplo, não poderá produzir conteúdo e se quiser ser sócia de uma
empresa de radiodifusão estará limitada a 30%.
Quem se beneficia com essa
regra até o hipotético dia em que a TV Paga ultrapassar a TV aberta no
país? Na verdade, a regra funciona como reserva de mercado da produção e
distribuição de conteúdo na TV aberta para as atuais empresas de
radiodifusão.
E mais. A lógica do capital
levará, mais cedo ou mais tarde, às empresas de telefonia a pressionar
pela sua entrada também na produção de conteúdo. Ou farão isso “de fora
prá dentro”, isto é, produzirão em estúdios em outros países e
distribuirão aqui (o que a Lei não impede). Neste caso, voltaríamos à
questão do item 1, acima: não seria o caso de se proteger a “indústria”
audiovisual brasileira?
4. A vigência dos artigos 16º
ao 18º do Capítulo V que trata de proteção “Do Conteúdo Brasileiro” está
limitada (1) pelo artigo 21º que contempla o relaxamento das normas, a
critério da ANATEL, diante de “comprovada impossibilidade de
cumprimento”; e (2) pelo artigo 41º que prevê o término da vigência doze
anos a partir da promulgação da Lei. Vale dizer, a partir de setembro
de 2023, não mais valerão as exigências, por exemplo, de: três horas e
meia de programação nacional por semana no horário nobre; em cada três
canais dos “pacotes” comercializados, um terá que ser brasileiro; ou
metade do conteúdo nacional terá de ser de produção audiovisual
independente.
5. A Associação Brasileira de
Canais Comunitários (ABCCOM) solicitou à Presidenta Dilma o veto dos
parágrafos 1º, 5º, 7º e 8º do artigo 32 da Lei. Por quê? Eles vedam “a
veiculação remunerada de anúncios e outras práticas que configurem
comercialização de seus intervalos, assim como a transmissão de
publicidade comercial” e prevêem que “em caso de inviabilidade técnica
ou econômica”, a critério da ANATEL, as operadoras fiquem desobrigadas
de transmitir os chamados “canais públicos de utilização gratuita”, isto
é, comunitários, legislativos, universitários, educativos, culturais,
dentre outros.
A Presidenta Dilma não atendeu à solicitação da ABCCOM.
6. Para alguns “liberais” que
repudiam qualquer tipo de interferência do Estado, as “disposições
retrógradas” da lei – válidas apenas para os próximos 12 anos! – são:
(1) o estabelecimento de cotas para produtores nacionais (inexpressivas
3h30 por semana quando se considera que no 1º substitutivo do projeto
original previa-se exatamente o dobro deste tempo e/ou quando se compara
aos 50% exigidos em países da Europa); e (2) o papel atribuído à ANCINE
que expedirá os certificados de produção nacional ou independente para o
que de fato merecer essa classificação.
Lições possíveis
Vale registrar que não só o senso
comum, mas também teorias vigentes na Ciência Política, nos ensinam que
uma das melhores maneiras de se identificar os interesses em jogo em
determinada decisão é verificar como se manifestam sobre ela os
principais atores envolvidos.
A epígrafe deste artigo aparece
em editorial do jornal O Globo que começa elogiando as privatizações do
governo FHC; desqualifica os “governos populistas” da Venezuela, da
Bolívia, do Equador e da Argentina pelas “experiências desastrosas” no
campo das comunicações; condena as propostas da 1ª. CONFECOM; e, por
fim, elogia a aprovação do PLC 116, considerado “realista” e livre de
“contaminações ideológicas dirigistas”.
Não estaria aí uma boa indicação de alguns interesses que estão sendo atendidos e de quem (de fato) ganha com a Lei 12.485?
Por fim, não podemos nos
esquecer (1) que o critério fundamental para avaliação de qualquer
legislação aplicável ao setor de comunicações deve ser sempre se ela
possibilita o aumento da participação de mais e diferentes vozes no
debate público; e (2) que a Lei 12.482 regula um setor importante, mas
relativamente pequeno, do enorme campo que deverá ser abrangido por um
marco regulatório voltado para a positivação do direito à comunicação no
Brasil.
A ver.
Sintonia Fina
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