Forti: "Juro por la pátria, mi madre y los 30 mil desaparecidos"
O passado que a Argentina enfrenta com a coragem que o Brasil não tem
Luiz Cláudio Cunha
Especial para Sul21
A frase inesperada congelou a
plateia colorida de azul, branco e marrom cáqui que lotava na
segunda-feira, 12 de dezembro, o Salão San Martín, o espaço nobre do
Edifício Libertador, sede do comando do Exército em Buenos Aires.
Perfilados diante do ministro da Defesa, Arturo Puricelli, os
brigadeiros, almirantes e generais do Alto Comando das Forças Armadas
argentinas ouviram, crispados, a sentença súbita e cortante da
autoridade que subvertia o rígido protocolo castrense:
— Juro por la pátria, mi madre y los
30 mil desaparecidos! — improvisou o advogado e diplomata Alfredo Waldo
Forti, 61 anos, ao prestar o juramento de praxe para renovar seu mandato
como Secretário de Assuntos Internacionais da Defesa. Nenhum militar
aplaudiu, mas nenhum protestou.
Todos respeitaram a frase atrevida de
Forti, que dava ali o seu corajoso testemunho pessoal diante da
corporação fardada que legou à Argentina, no período da chamada ‘guerra
suja’ de 1976 a 1983, o desonroso título de ditadura mais sangrenta
entre os regimes militares que sufocaram a democracia no Cone Sul do
continente, na segunda metade do Século 20.
Nélida Azucena Sosa de Forti: presa no avião quando saía do país com os 6 filhos
Forti e sua mãe são símbolos dessa
violência — ele como sobrevivente, ela como um nome a mais na multidão
de desaparecidos políticos no período da repressão militar. A bela
morena Nélida Azucena Sosa de Forti, ex-integrante dos Montoneros, o
movimento guerrilheiro da esquerda peronista, tinha acabado de embarcar
no voo 284 da Aerolíneas Argentinas que sairia do aeroporto de Ezeiza
rumo a Caracas, na manhã de 18 de fevereiro de 1977.
Fugindo do clima político cada vez
mais fechado do país, desde o golpe militar desfechado um ano antes,
Azucena levava consigo os seis filhos, de 6 a 16 anos, incluindo
Alfredo, o mais velho. Já com os cintos afivelados para a decolagem,
tiveram que desembarcar, chamados de repente para resolver ‘problemas de
documentação’.
A mãe e as crianças foram recebidas por agentes armados
da polícia de Buenos Aires, subordinada ao Primeiro Corpo de Exército.
Com os olhos vendados, foram colocadas em dois carros e levadas para o
Pozo de Quilmes, um quartel da Brigada de Investigações da polícia
localizado numa cidade da região metropolitana, ao sul da capital.
Forti
para Bussi: "Não tenho problema nenhum em cravar a faca cinco vezes em
você. Mas a formação que recebi de minha mãe me diz que esta não seria a
maneira certa"
Uma semana depois, as crianças
reapareceram, vendadas com lençol e amarradas na árvore de uma praça no
Parque Patrícios. Azucena ainda foi vista por um prisioneiro de Quilmes
na primeira semana de março, até ser transferida para a chefatura de
polícia de San Miguel de Tucumán, sua cidade de origem, 1.300 km a
noroeste de Buenos Aires. A ordem de prisão e transferência para Tucumán
partiu do general Antonio Domingo Bussi, que comandava a repressão mais
feroz à guerrilha rural mais ativa do país na menor província da
Argentina.
Azucena foi vista com vida, pela
última vez, no centro clandestino de detenção conhecido como Arsenales,
na saída norte da cidade, onde funcionava a Companhia de Arsenais Miguel
de Azcuénaga, da V Brigada de Infantaria. Era um típico campo de
concentração, cercado por duas cercas de alambrado separadas por uma
faixa de terra vigiada por soldados e cães e altas torres de sentinelas.
Alfredo Forti e seus cinco irmãos
nunca mais tiveram notícias de Azucena. No final da década de 1990,
advogado com banca em Washington e consagrado assessor político dos
governos do Peru, Equador e Guatemala, ele descobriu que dividia
casualmente o mesmo voo da Aerolíneas com o algoz de sua mãe, Bussi,
então um septuagenário general reformado. Naqueles tempos, a refeição
era servida com talheres de metal, não de plástico. Em pleno voo, Forti
deixou sua poltrona e foi até onde se sentava o general. Sem se
apresentar, inclinou-se sobre ele, entreabriu o paletó e lhe disse:
Até o parceiro norte-americano exigia explicações sobre a mãe de Forti
— Estás vendo esta faca? Não tenho
problema nenhum em cravá-la cinco vezes em você. Mas a formação que
recebi de minha mãe me diz que esta não seria a maneira certa de
resolver as coisas. Eu quero te ver apodrecer no cárcere! — amaldiçoou
Forti, deixando para trás, tremendo, o homem que fazia a Argentina
estremecer na década de 1970.
Caso americano
O nome de Bussi fazia abalar o
prestígio da Argentina até nos Estados Unidos, no auge da ditadura. O
National Security Archive da Universidade George Washington revelou, em
2002, o conteúdo de 4.600 documentos secretos do Departamento de Estado
que abordavam violações de direitos humanos no país. O telegrama 04997
que a Embaixada em Buenos Aires enviou a Washington, no dia 29 de junho
de 1978, relacionava os nomes de 103 pessoas das quais o governo
norte-americano exigia informações. Um dos “casos de direitos humanos de
interesse para os Estados Unidos” era o nº 71-77-5, de Nélida Azucena
Sosa de Forti, com o status de “desaparecida”.
Cópia do telegrama da embaixada
Azucena e milhares de compatriotas
começam a desaparecer quando emerge, no mapa argentino, a sinistra
figura do CCD. É a sigla dos Centros Clandestinos de Detenção,
instalações secretas das Forças Armadas para executar o mesmo plano que
Adolf Hitler, em 1941, batizou poeticamente de Nacht und Nebel (Noite e
Névoa): um projeto de Estado para o desaparecimento de opositores ao
regime. Os generais argentinos, como seus confrades nazistas,
programaram a eliminação física dos dissidentes numa operação que
começava com os sequestros, geralmente sob o manto da noite, e depois se
completava pela névoa do desaparecimento sem pistas, sem rastros.
Havia método na loucura, como
bradava Hamlet. Os CCD, apesar das diferenças, tinham uma estrutura
básica e eficiente: uma ou duas salas de tortura, alojamento decente
para abrigar os guardas e torturadores e espaço amplo e indecente para
receber os presos. Todos tinham serviço médico e, em alguns casos, até
um capelão para atender a consciência pesada dos mantenedores da ordem.
Inspiração brasileira
Começaram em meados da década de
1970 como pequenas casas ou porões clandestinos e, à medida que
endurecia o regime, cresciam os CCD, espalhados pelos maiores quartéis
do país, todos engolfados no turbilhão da tortura. Em 1976, ano do golpe
de 24 de março, 610 CCD assombravam o país. Havia 68 deles só na
província de Buenos Aires, 13 apenas na capital — incluindo os notórios
CCD da ESMA, a temida Escola de Mecânica da Armada, e do Campo de Mayo, o
maior quartel do país.
Bussi: uma das mais terríveis faces da repressão argentina.
A província de Tucumán, onde
reinaria o general Bussi, tinha 16 CCD, a metade deles apenas na
capital, San Miguel, terra onde nasceu a cantora Mercedes Sosa e onde
desapareceu Azucena. Era um número espantosamente grande de terror
disseminado por um único país. Os CCD excediam, em número, aos DOI-CODI
da ditadura no Brasil (1964-1985), um país três vezes mais extenso,
quase cinco vezes mais populoso e assolado por um regime de arbítrio
três vezes mais longevo do que a da ditadura na Argentina (1976-1983).
A receita brasileira surgiu bem
antes, em 1969, com a modelar OBAN, a Operação Bandeirante do II
Exército, em São Paulo, que inovou unindo inteligência e violência das
Forças Armadas, da Polícia Militar e dos policiais mais truculentos das
delegacias da capital, onde despontou a liderança do delegado Sérgio
Fleury, que se tornaria o símbolo internacional da repressão brasileira
como estrela maior do DOPS.
Um ano depois, a fórmula de sucesso
foi definitivamente militarizada, sob o comando do Exército, com a
criação dos Destacamentos de Operações de Informações, os DOI do serviço
sujo, que saíam às ruas para combater, sequestrar e torturar os
militantes da guerrilha urbana. Eram coordenados pelos Centros de
Operações de Defesa Interna, os CODI. Nascia a marca mais letal do
regime brasileiro: os DOI-CODI, parceria macabra que se estendia pelos
dez mais importantes comandos militares do país, nas grandes capitais.
Essa dezena de repartições públicas
do terror, na estimativa do historiador Carlos Fico, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, autor de Como eles agiam — os subterrâneos da
ditadura militar: espionagem e polícia política (ed. Record, 2001),
abrigava cerca de 1.000 pessoas diretamente envolvidas com a repressão e
a tortura — a quinta parte do efetivo do SNI, 5.000 arapongas, no auge
do Governo Figueiredo. Antecipando os CCD argentinos, os militares
brasileiros ainda montaram sete centros clandestinos de tortura em cinco
Estados diferentes.
DOI-CODI Hilton e CCD Sheraton, maus locais de hospedagem
Hilton e Sheraton
Um sítio em Sergipe, um apartamento
em Goiânia, uma casa no Recife, três locais em São Paulo (uma casa na
avenida 23 de Maio, um sítio em Atibaia e uma chácara em Parelheiros, na
zona rural paulistana) e a ‘Casa da Morte’, uma residência de aspecto
acolhedor, com varanda e lareira na sala, numa rua tranquila de
Petrópolis, na serra fluminense. O lugar, como um superlativo dos
horrores comandados pelo CODI, ganhou um cifrado apelido dos militares
que o frequentavam: “Codão”.
Os DOI-CODI mais importantes
estavam nas duas maiores cidades brasileiras. O do Rio de Janeiro,
instalado no quartel da Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita,
registrou 735 denúncias de torturas, segundo o projeto Brasil Nunca
Mais. Num espaço de 21 meses, entre julho de 1972 e março de 1974,
quando o I Exército era comandado pelo general linha-dura Sylvio Frota,
morreram ali 29 presos. O maior e mais notório DOI-CODI do país era o de
São Paulo, com 250 homens da PM e da polícia civil, integrado ainda por
10 oficiais do Exército, 25 sargentos e cinco cabos sob o comando de
seu fundador, o major Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Ele redesenhou o 36º Distrito
Policial, uma decadente delegacia a cinco quadras do ginásio do
Ibirapuera, para instalar ali o DOI-CODI que se tornou o símbolo mais
sangrento do regime: passaram por lá 2.541 ‘subversivos’ e 51
‘terroristas’ morreram trocando bala com sua equipe barra-pesada, na
heroica versão do próprio Ustra. Nos 40 meses em que o major reinou ali,
entre 1970 e 1974, houve 502 denúncias de tortura (uma a cada 60 horas)
e 40 mortos (um por mês) nos interrogatórios, segundo levantamento da
Arquidiocese de São Paulo.
O centro de torturas de Ustra
ficava na esquina da rua Tutóia com Tomás Carvalhal. Quando um preso era
levado para lá, os agentes do DOI-CODI brincavam com a fama do lugar:
“Agora você vai conhecer o Tutóia Hilton“, diziam. O que era Hilton, no
Brasil, era conhecido como Sheraton na Argentina. O CCD Sheraton
funcionava na subcomissaria de polícia de Villa Insuperable, em La
Matanza, o mais populoso dos municípios da região metropolitana de
Buenos Aires, onde vivem 13 milhões de pessoas, a maior aglomeração do
continente, abaixo só de São Paulo.
O ministro Martinez de Hoz, com um CCD (Centro Clandestino de Detenção) em sua empresa
Era um prédio de dois andares, com a
garagem e as celas no térreo e a sala de tortura no andar superior,
situado a quatro quadras da avenida General Paz, uma movimentada via de
24 km de extensão que margeia a capital ao norte e a oeste. Um CCD
chegou a funcionar em 1975 na maior siderúrgica do país, a Acindar,
presidida por José Alfredo Martinez de Hoz, a versão portenha de Delfim
Netto, o poderoso ministro da Economia ao longo dos cinco anos do brutal
governo do general Jorge Videla.
A patota dos Falcon
Talvez para amenizar a sombra que
pairava sobre os CCD, os generais da névoa argentina lhes outorgavam
codinomes ou apelidos singelos, quase inocentes, que camuflavam sua
lúgubre destinação: El Campito, La Perla, Los Plátanos, El Banco, El
Chalecito, La Casita de Los Mártires, El Olimpo, El Motel, La Escuelita
para Mudos. Como os DOI brasileiros, os CCD argentinos contavam com
seus grupos de busca e apreensão, os GT (ou grupos de tarefas),
conhecidos como patotas.
Milhares de retratos em branco e preto que jamais foram atualizados | Foto-montagem de Emmanuel Frezzotti / Flickr
A eles cabiam a captura dos
subversivos, circulando pelas ruas das cidades nos temidos sedã Ford
Falcon azul ou verde, quatro portas, que formavam a frota da repressão.
Os presos eram detidos, encapuzados, algemados e levados ao CCD para a
tortura, praticada pela mesma patota, durante um ou dois meses. Após
este período, os detidos simplesmente desapareciam, sumiam.
Como toda ditadura, a argentina
recriava o idioma para ocultar sua maldade. Ninguém era preso, apenas
chupado, eufemismo militar para quem era preso. Entre os repressores, os
CCD eram conhecidos como chupaderos. Da mesma forma, ninguém morria. Os
detidos que eram desaparecidos passavam apenas por um translado. Não
importava a forma final utilizada, fuzilamento em massa, fossa comum,
incineração de cadáver ou uma tumba com a lápide NN (no nombrado), todos
eram apenas transladados.
Pichação num muro de Buenos Aires
Quem tivesse o azar de ser sugado
por um chupadero dos CCD dificilmente escaparia do translado. No CCD El
Olimpo, num bairro do lado oeste, a 100 metros da agitada avenida
Rivadavia que atravessa Buenos Aires, foram chupados cerca de 700 homens
e mulheres. Menos de 50 saíram vivos dali. Na ESMA, a escola de morte
da Marinha na capital argentina, passaram mais de 5.000 presos, dos
quais sobreviveram pouco mais de cem. O CCD El Campito foi instalado no
coração do maior quartel argentino, o Campo de Mayo, a 30 km do centro
de Buenos Aires. Ali sobreviveram apenas 43 dos 5.000 detidos chupados
pela repressão. Ele tinha um requinte a mais: o hospital militar
utilizado para os partos clandestinos nas prisioneiras. Após o
nascimento, o bebê era chupado para famílias dos militares e a mãe,
usualmente, era submetida ao translado inapelável. Cerca de 500 bebês,
sequestrados de pais desaparecidos, fazem parte desta tétrica
estatística argentina.
"Temos que matar e aniquilar a todos os guerrilheiros", ordenou Isabelita Perón
O primeiro CCD do país surgiu, por
ironia, na terra natal da transladada Azucena. Em 1975, ainda antes do
golpe de Videla, o Exército aproveitou o prédio inacabado de uma
escolinha na saída oeste da cidade de Famaillá, a 40 km da capital de
Tucumán, San Miguel, para instalar o seu primeiro centro clandestino,
que passou à história como La Escuelita. Das oito salas de aula, sete
viraram celas e a última, o local de tortura. A menor província do país
estava agitada, como foco guerrilheiro escolhido pelo grupo trotskista
‘Exército Revolucionário do Povo’ (ERP) para confrontar o regime da
presidente Isabelita Perón, aproveitando a geografia montanhosa da
região aos pés dos Andes.
Genera Vilas, linha duríssima superada por Bussi
A sanha de Isabelita
O governo lançou a ‘Operação
Independência’, para reprimir a guerrilha do ERP, sob a chefia do
general Acdel Edgardo Vilas, comandante da V Brigada de Infantaria de
Montanha, baseada em Tucumán. Linha duríssima, ele confiava mais na bala
do que na lei: “É mais fácil passar um camelo pelo buraco da agulha do
que condenar um subversivo num tribunal”, avisava Vilas. Pela agulha do
CCD de Famaillá passaram, nas contas do general, 1.507 pessoas, mas
cálculos mais realistas falam em mais de 2.000 pessoas.
La Escuelita já operava com força
quando a presidente da República visitou o Comando Tático de Famaillá, a
cinco quadras dali, para insuflar a sanha assassina dos militares:
“Temos que matar e aniquilar a todos os guerrilheiros”, ordenou
Isabelita, com ímpeto chupadero, meses antes dela mesmo ser transladada
do poder pelos companheiros de armas de Vilas.
Bussi logo encontrou o que fazer
Uma investigação posterior de
parlamentares apurou que, sob o comando do general, Tucumán assistiu a
123 sequestros de opositores — dos quais 14 foram assassinados e 77
simplesmente desapareceram, transladados. Quando o general Antonio
Domingo Bussi chegou para assumir o comando, no final de 1975,
lamentou-se com seu antecessor: “Vilas, você não me deixou nada por
fazer!…”.
Modéstia de Bussi. Entre 1976 e 77,
o general fez três vezes mais do que Vilas: aconteceram 371
desaparecimentos na província — 194 deles supostos militantes Montoneros
ou meros simpatizantes. Numa comissão de investigação parlamentar,
Osvaldo Humberto Pérez — que foi chupado pelo CCD Arsenales e, ao
contrário de Azucena, sobreviveu — contou que ali, no espaço de um ano,
foram fuziladas entre 800 e 1.000 pessoas. Em abril de 1976, o lugar
ganhou o reforço de 40 soldados enviados desde Campo de Mayo.
Um deles, Omar Eduardo Torres,
depondo na década de 1980 perante a Comissão Nacional sobre o
Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), presidida pelo escritor Ernesto
Sábato, contou como era a vida (e a morte) no CCD Arsenales, subordinado
diretamente ao general Bussi.
— Uma vez vi como um preso desnudo
era enterrado vivo, só com a cabeça fora do buraco, com a terra em volta
molhada para ser compactada com os pés. O preso ficava lá 48 horas. O
buraco provocava cãibras dolorosas e infecções na pele. Por duas vezes
presenciei fuzilamentos ali, e quem efetuava o primeiro disparo era o
general Antonio Bussi. Depois ele fazia com que todos os oficiais de
maior hierarquia atirassem também. O local das execuções estava
localizado a uns 300, 400 metros da Companhia de Arsenais, montanha
acima. Estendiam um cordão de segurança a uma distância de 20 metros e
outro a uns 100 metros do local. Os disparos eram feitos com pistolas
calibre 9 mm ou 11.25 mm, sempre entre as 23h e 23h30. A cada 15 dias se
assassinavam entre 15 a 20 pessoas — relatou o soldado Torres.
A coisa certa
O ex-soldado Domingo Jerez garantiu
ao juiz Carlos Jiménez Montilla, em fevereiro de 2010, que testemunhou o
general Bussi matar a bordoadas a dois homens em um campo de
concentração em Timbó Viejo, localidade ao norte de San Miguel, na
rodovia 305. “Vi quando colocaram o cano de um fuzil na vagina de uma
mulher grávida”, contou o soldado.
O general Bussi no tribunal
Bussi trocou La Escuelita pelo CCD
Nueva Baviera, um velho engenho de açúcar dotado de heliporto e vários
caminhões para transporte de tropas e prisioneiros. Ele descentralizou a
tortura e ampliou suas patotas. Atacou com bombas a universidade local,
os partidos, os opositores. Advogados, sindicalistas e políticos foram
alvo de sequestro, prisão e tortura. Bussi, como se via, ainda tinha
muito que fazer. Dono de um par de olhos azuis frios como as rajadas que
sopravam dos Andes, Bussi mantinha a cara fechada, casmurra, apropriada
para aqueles tempos azedos. Seu braço longo cruzou a longa distância
até Buenos Aires para alcançar a montonera Azucena minutos antes de
alçar voo para a liberdade.
Alfredo Forti abriu processo contra o general Bussi em 2005
O secretário Alfredo Forti, o
garoto sequestrado por ordem de Bussi, abriu um processo contra o
general em 2005, depois que o Governo Kirchner revogou as anistias do
Ponto Final e da Obediência Devida, que deixavam impunes os
torturadores. Assim, outros 800 processos por sequestro, tortura e
morte, antes engavetados, voltaram a assombrar o velho general, que
passou a frequentar os tribunais como uma caricatura de seu decrépito
poder, envelhecido, enfraquecido por doenças dos pulmões e do coração,
com uma sonda de oxigênio sempre enfiada no nariz.
Bussi: "Não nego, nem afirmo"
Acossado também por denúncias de
contas clandestinas no exterior, respondia ao melhor estilo Maluf: “Não
nego, nem afirmo”. Em 2003, eleito para a prefeitura de San Miguel, a
cidade que ele aterrorizou na ditadura, foi impedido de assumir o cargo,
acusado pelo desaparecimento e morte do senador peronista Guillermo
Vargas Aignasse.
Foi denunciado também por crimes de
lesa humanidade e pelo desaparecimento de outras 72 pessoas, o que lhe
rendeu a prisão perpétua em agosto de 2008. O chefe temido da repressão
argentina foi destituído com desonra do Exército. Não conseguiu ver as
outras condenações iminentes, porque o coração enfim falhou, em novembro
passado, determinando o seu translado irremediável aos 85 anos.
Um único deputado de Tucumán
animou-se a pagar o anúncio de falecimento num jornal local, assim mesmo
com o estrito cuidado de citar o nome do filho vivo, não do pai morto:
“O deputado Alberto Colombres Garmendía participa com dor o falecimento
do pai do deputado Ricardo Bussi”.
O secretário de Assuntos
Internacionais da Defesa, Alfredo Waldo Forti, não viu o sequestrador de
sua mãe apodrecer no cárcere, como imaginava.
O filho de Azucena viu coisa pior: o
general Antônio Bussi, como acontece com os criminosos de todas as
ditaduras, apodreceu em vida, chupado pela memória de seus abusos,
cravado pela lâmina aguda dos tribunais e da Justiça.
Como ensinava Azucena a seus
filhos, é a maneira correta de resolver as coisas num país que respeita
sua história, sua memória, seu povo.
* Luiz Cláudio Cunha é jornalista.
Sintonia Fina
- Conversa Afiada
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