Na zona sul de São Paulo um sítio isolado guarda, esquecido, histórias de terror que podem ser a chave para entender um dos pontos mais obscuros da ditadura: os centros clandestinos de tortura. E a assombrosa colaboração civil.
Natalia Viana, da Pública, com reportagem de Tony Chastinet e Luiz Malavolta
“Você está em poder do braço clandestino da repressão. Ninguém pode te tirar daqui”, é o que você ouve quando chega no sítio, depois de mais de uma hora metido no banco de trás do fusquinha com um capuz quente na cabeça, e a cabeça entre as pernas.
Você foi apanhado na Avenida Brigadeiro Luis Antônio, uma das mais movimentadas de São Paulo. Te enfiaram dentro do carro, dois homens grandes, meteram o capuz. Então você é todo ouvidos e corpo, e cada balanço ou ruído vai se gravando em sua mente tão vivo que você se lembrará deles para o resto da vida.
Minutos depois, pegam a estrada. Tráfego intenso. Saem da cidade, estradinha de terra, passa um trem, devagar. Quando o carro finalmente estaciona, você ouve a frase de boas-vindas e, apavorado, consegue memorizar o chão de cimento, por onde é empurrado antes de ser arremessado por escada que leva a um lugar subterrâneo. Seus algozes chamam aquilo de “buraco”, com razão. Não tijolos, nem paredes, o calor é forte cada vez que você apalpa à volta, caem blocos de terra molhada. O chão é lodoso. Seu cativeiro é úmido e infinito.
Quando te tiram a roupa – você vai ficar assim por muito tempo. Primeiro: o pau-de-arara. Trata-se de um invento simples, bem brasileiro. Uma barra de ferro apoiada sobre cavaletes, onde te penduram enrolado, pesando sobre os braços e pernas. Eles te batem, te chutam, dão choques elétricos; nada de maquininha de Tio Sam, são fios desencapados que chegam diretamente no sovaco, na barriga, na boca.
O dono do sítio, coronel Fagundes (em pé), e seus amigos do DOI-Codi. |
Você se pergunta: por que está ali? É 1975. Já se passaram dez anos desde o golpe militar no Brasil. O novo governo dos milicos [general Ernesto Geisel] prometia uma volta pacífica à democracia, com um governo civil.
Depois de prender centenas de opositores, mandar milhares para o exílio e exterminar os grupos de resistência armada, a ditadura começava a querer ser vista como “ditabranda”. É claro que você não acreditava, mas estava em todos os jornais. De qualquer forma, você era conhecido publicamente, não devia temer. Jamais se envolveu na luta armada; advogado, comunista do Partidão (PCB), foi vereador e deputado federal, você sempre acreditou na política. Pela sua atuação, já havia sido preso. Mas torturado, jamais. Até o dia 1 de outubro de 1975.
Você já tinha ouvido falar nesse tipo de lugar. O chacoalhar do carro rumo à zona rural só confirmou que você iria sofrer mais – que iria morrer. Não estavam te levando para uma delegacia, onde bem ou mal alguém poderia te ver e lembrar de você. Estava caindo nos braços clandestinos do horrendo regime militar.
Existiam dezenas de lugares como esse. Eram os centros clandestinos de tortura. Ao mesmo tempo em que o governo militar começava a falar em abertura, os milicos e policiais civis usaram esses lugares para seguir com seu velho método de fazer as coisas. Em meados da década de 1970, o governo falava em acabar com as torturas, e os “teatrinhos” foram banidos: aquelas cenas armadas de falso tiroteio para encobrir a morte de gente que fora na verdade morta sob tortura (era assim que os policiais chamavam a encenação descarada).
Nos centros clandestinos, torturava-se em segredo, e não raro se sumia com os corpos. Muitos dos desaparecidos da ditadura brasileira passaram por eles.
Ali, fora do aparato oficial, podia-se massacrar ao ar livre. Em seu caso, a tortura usava o que o sítio tinha a oferecer: as árvores, o açude, os dois lagos.
Segundo: a sufocação. Eles te levam para um córrego raso, com pedras no fundo. Ali, soltam água de uma espécie de reservatório e você é jogado para baixo, ralando nas pedras as feridas do corpo. Terceiro: a “piscina”, como eles chamam, na verdade um poço lamacento onde te afogam segurando sua cabeça. Quarto: a árvore. Pendurado pelos pés, você recebe socos, choque elétricos. Um químico é jogado sobre seu corpo, arde. Seus gritos se misturam ao de outras pessoas, que você ouve estarem sendo torturadas – homens, mulheres.
Um dia, te tiram dali, apressadamente. Dizem que seu sumiço foi denunciado no Congresso Nacional e na assembléia do Rio de Janeiro. Vão ter de te liberar. Seu martírio acaba numa casa, na periferia de uma cidade. Um médico o visita diariamente, para assegurar que você estará “apresentável” quando for solto. No dia 22 de outubro de 1975, finalmente você tira o capuz.
Seu nome é Affonso Celso Nogueira Monteiro. Em 2011, aos 89 anos, os olhos ainda ficarão opacos quando lembrar daqueles dias e seu corpo, envelhecido, guardará ainda todas as marcas. Você é o único prisioneiro que saiu com vida da Fazenda 31 de Março – nome do sítio clandestino de tortura, uma homenagem à data do golpe militar de 1964.
Membros da CPI da vala de Perus em vistoria à Fazenda 31 de Março. |
Muitos não tiveram a mesma sorte. Antônio Bicalho Lana e sua companheira Sônia Moraes, ambos da guerrilha Ação Libertadora Nacional (ALN), foram assassinados no sítio em 1973. Depois, foram levados até o bairro de Santo Amaro, onde se encenou um tiroteio – mais um dos “teatrinhos”. Foram enterrados em vala comum. Ali também mataram o líder estudantil Antonio Benetazzo, em 1972, preso na Vila Carrão, leste de São Paulo. A versão oficial, veja, é depois de preso ele teria se jogado sob as rodas de um caminhão. Foi enterrado como indigente.
Fagundes, o “pacificador”
O sítio 31 de Março é a prova de que existia uma rede de locais clandestinos de tortura no Brasil nos anos de 1970. Mas, como grande parte da história da ditadura militar brasileira, jamais se investigou como e quando foram usados.
Joaquim Fagundes, o “coronel Fagundes”, e sua mulher ao lado do oficial do Exército e comandante da Oban, Carlos Alberto Brilhante Ustra, e sua mulher. |
O “dono” do sítio 31 de Março era um empresário mineiro, Joaquim Rodrigues Fagundes. Acusado de grileiro, ele se apossou da terra nos primeiros anos da década de 1970. Chegou tocando o terror: junto com capangas, exibiam armas de uso exclusivo das Forças Armadas, invadiam a casa de moradores, chegaram a surrar um deles para que “desse o fora”, como se dizia na época.
Fagundes se gabava de ser amigo do “pessoal do DOI-Codi”, a central militar que comandava a repressão. Seu caseiro na época, Alcides de Souza, reconheceu que ele emprestava o sítio para os milicos fazerem treinamento. “Tem vez que chegam aqui 2 mil homens – acampam, correm pra cá, pra lá, dão tiros, cortam a mata”, disse.
Fagundes era dono da Transportes Rimet Ltda., na Mooca. Sua empresa não fazia muita coisa. Tinha um único cliente, a estatal Telesp – Telecomunicações de São Paulo, que na época controlada pelos militares do governo paulista. Ali na Mooca, era sempre visto acompanhado pelos bravos amigos de farda, como o coronel Erasmo Dias, conhecido por ter invadido a universidade católica (PUC) e metido ferro nos estudantes. Ele mesmo ia uma vez por semana até a sede do DOI-Codi, na rua Tutoia. “Ele tinha autoridade, andava com os milicos”, lembram os vizinhos.
Quando não tinha ninguém gemendo ou sufocando, a turminha de Fagundes usava o sítio para churrascos e almoços festivos. Vinham nomes como mesmo Erasmo Dias, bem como o coronel Brilhante Ustra, cujo comando do DOI-Codi foi marcado por mais de 500 denúncias de tortura, e o delegado da Polícia Civil Sérgio Paranhos Fleury, que comandava esquadrões das morte antes da ditadura, e o massacre dos opositores depois. Só a nata da repressão. “O Fleury era amigão da gente”, lembra Alcides, o caseiro.
Fagundes é o terceiro da direita para a esquerda, próximo ao médico legista Harry Chibata, ao delegado Romeu Tuma e outros policiais em homenagem feita pelo Exército. |
Jamais foi militar, jamais teve um cargo oficial. E jamais foi chamado a prestar contas pela sua atuação.
Pelo contrário. Em 1984, recebeu uma comenda do Exército, tornando-se, oficialmente, “comendador”, título que consta ainda hoje em sua lápide no Cemitério da Quarta Parada, zona leste de São Paulo. O País agradece.
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