Em que diferem os “jornais tablóides britânicos” dos “jornais tablóides brasileiros”? Tantos uns quanto outros encontram-se sempre a poucos metros de se tornarem “sinônimo de leviandade na apuração dos fatos, exagero nos relatos e espetacularização da notícia”.
Washington Araújo
O editorial da Folha de S.Paulo de 8/7/2011 confirma a afirmação sartreana de que “o inferno são os outros” e a popular máxima que “pimenta nos olhos dos outros é refresco”. A abertura é um primor de assertividade e clareza de pensamento: “Jornais tablóides britânicos se tornaram sinônimo de leviandade na apuração dos fatos, exagero nos relatos e espetacularização da notícia.”
Alimentemos, então, com parte considerável deste estoque de lenha a caldeira do pensamento. Em que diferem os “jornais tabloides britânicos” dos “jornais tablóides brasileiros”? Tantos uns quanto outros encontram-se sempre a poucos metros de se tornarem “sinônimo de leviandade na apuração dos fatos, exagero nos relatos e espetacularização da notícia”.
Os próprios arquivos deste Observatório, com seus milhares de textos tendo como tema central a crítica de imprensa, constituem valioso acervo a corroborar tais afirmações. Claro que cabe apenas ao pesquisador paciente casar reportagens, notícias, escândalos reais e escândalos para consumo dirigido com as respectivas chancelas: isto aqui é pura leviandade, isto ali não passa de rematado exagero da imprensa e toda essa montanha de textos pode facilmente ser chancelada como “espetacularização da notícia”.
A própria Folha de S.Paulo poderia, ao escrever tão cristalina abertura de editorial, estar mirando algumas de suas recentes investidas no campo da leviandade explícita, como por exemplo a publicação do artigo do cientista político César Benjamin no dia 27 de novembro de 2009 sob o título “Os filhos do Brasil” (pág. A8). À época muitos foram os que entenderam ser desejo do jornal fazer um contraponto à mistificação quase inumana do filme Lula, o Filho do Brasil. A propósito, escrevi aqui no Observatório o texto “Os filhos da verdade”, que tinha intenção de ser o contraponto do contraponto.
Aos que se inteiraram do tema, levado às páginas em estado de combustão, ficou a nítida percepção de absoluta leviandade na apuração dos fatos, onde a palavra a reinar inteiramente era a do articulista, sem qualquer interesse em dar voz a alguns dos personagens ainda vivos e dispostos a compartilhar suas memórias daqueles dias em que conviveram com o prisioneiro Luiz Inácio Lula da Silva. O mesmo episódio foi amplamente pautado pelo exagero em suas diversas cores e nuances e, finalmente, e em sua forçada espetacularização personificou o antiespetáculo ao que estava parra estrear nas telas de cinema.
O editorial em questão trata do fim decretado pelo magnata Rupert Murdoch a um dos jornais de seu megaimpério midiático, o britânico News of the World. Segundo a Folha, o tablóide é visto como “um dos mais bem-sucedidos na exploração do sensacionalismo” e a causa mortis seria “seus próprios excessos”. O resto do editorial aborda o que configura mau jornalismo e o que leva à existência de uma “imprensa criminosa” (aliás, título do editorial): ... a extensão, pela aparente certeza de impunidade e pelo grau de desconexão dos editores e repórteres com boas práticas do jornalismo e com regras triviais de decência.
Novamente poderíamos colocar diante de nossa imprensa um prosaico espelho. E nem precisa ser daqueles para ver o corpo inteiro. Alguém já se deu o trabalho de catalogar a quantidade de acusações levianas publicadas na imprensa contra pessoas inocentes? Alguém já pensou em inventariar o aspecto letal de matérias encomendadas, direcionadas a prejudicar a performance de ações de determinadas empresas nas bolsas de valores? Teria alguém tentado classificar por assunto as matérias que já nascem com seu desfecho pronto e acabado e que desconhecem ostensivamente a necessidade de se ouvir o tão falado “outro lado”?
Como vemos, o editorial “Imprensa criminosa” cai como luva não apenas no jornalismo britânico. A própria FSP poderia rever seu modus operandi. E também a revista carro-chefe da Editora Abril, Veja. A propósito, bastante ilustrativo do que estamos tratando é a matéria de sua edição de 4/7/2011 sob o título “Madraçal no Planalto”. O desfecho esperado é colocado, não ao final do texto e sim, no subtítulo. Eis o que diz o subtítulo: “Um dos símbolos da luta pela democracia durante o regime militar, a Universidade de Brasília tornou-se reduto da intolerância esquerdista” (clique aqui). Depois, caso o leitor seja apressado ou dado a ler na diagonal, bastaria conferir as imagens da matéria e ler suas legendas para ver que apuração jornalística passou longe, muito longe. Destaco aqui as legendas que acompanham as oito imagens:
1ª – Espelho – Em 1968, militares invadem a UnB. Em 2011, professores reclamam de controle ideológico;
2ª Na contramão – Salas de aula são utilizadas para festas e consumo de drogas. Professora discorda da liberalidade – e é punida;
3ª “O propósito da universidade deveria ser a excelência. Na UnB, isso foi substituído pela partidarização do ensino.” Frederico Flósculo, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo;
4ª “A UnB se tornou palco das piores cenas de intolerância. Não há espaço para diálogo. Ou você partilha do pensamento dominante ou será perseguido.” Roberta Kaufmann, procuradora, mestra em direito pela UnB;
5ª “A universidade foi tomada por um patrulhamento ideológico tácito, orquestrado para funcionar sem ser notado. Quem pensa diferente é relegado ao limbo.” Ronaldo Poletti, professor de direito;
6ª “A UnB deixou de ser uma instituição acadêmica para se tornar um instrumento de domínio ideológico.” Ibsen Noronha, ex-professor voluntário da Faculdade de Direito;
7ª “A UnB vive um processo típico de uma instituição que se tornou um aparelho em prol de uma causa.” Demétrio Magnoli, sociólogo;
8ª “Ninguém tem espaço sem esforço. É preciso analisar se não são os professores que, por uma questão de competência, perderam visibilidade.” José Geraldo Sousa Junior, reitor da Universidade de Brasília.
Àqueles observadores mais perspicazes da citada matéria de Veja não passou despercebido o esmero com que se escolheram as tanto as imagens quanto as legendas. À exceção da fotografia do reitor José Geraldo Sousa Junior que aparece com o semblante em crispação e um certo ar de truculência. Os demais retratados trazem consigo aquele ar de abnegada devoção à causa da justiça e também aquela nunca dispensável aura de serenidade que marca os que travam a luta do Bem. Neste caso, mais que isso, os paladinos do bom jornalismo capturaram um lamentável quê inquisitorial.
É ver para conferir. Teóricos da Semiologia como Charles Sanders Peirce (1839–1914) e Ferdinand de Saussure (1857–1913) ficariam encantados com o apuro a que chegou os seguidores da ciência que estuda os fenômenos culturais como se fossem sistemas sígnicos.
Mas, como comecei tratando do editorial da Folha de S.Paulo de 8/7/2011, acho bem oportuno, salvo apenas irônico, jogar mais luz sobre suas palavras finais: “O News of the World está no negócio de chamar os outros à responsabilidade. Mas falhou quando se tratava de si próprio”, resumiu comunicado da direção do jornal. “Um epitáfio apropriado.”
Apropriado, apropriadíssimo penso, não apenas ao News of the World, mas antes àqueles que fazem do ato de chamar os demais à responsabilidade um certo tipo de negócio...
Washington Araújo é jornalista e escritor. Tem o Blog Cidadão do Mundo.
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